Uma rede entre parentes no teatro

Sobre o projeto “Escambo, rede parente” e o espetáculo “MOMO – Um ato poético para testemunhas”.

Encontro e apresentações de 19 a 22 de Junho na Funarte de São Paulo.


HUMA”
Foto: Robert Coelho

        

Chega a São Paulo o projeto Escambo: Rede Parente, que desde Março faz a itinerância de quatro companhias, de três regiões brasileiras. Belém, Manaus, Campo Grande e agora a capital paulista recebem espetáculos, oficinas e encontros públicos, em um intercâmbio realizado com subvenção do governo federal, através da  Fundação nacional de artes (Funarte). O objetivo da sempre bem vinda circulação de poéticas e linguagens cênicas é, segundo os organizadores, oferecer “um rico e multifacetado território de fruição, formação e reflexão acerca da diversidade de linguagens e expedientes de criação desenvolvidos por artistas e coletivos do Norte, Centro-Oeste e Sudeste do país”.

            A programação começa hoje, 19 de Junho, com o Encontro Moitará, que reúne em bate papo aberto artistas dos grupos participantes:  Grupo Usina (Belém/PA), Fulano Di Tal (Campo Grande/MS), Cia.Cisco (São Paulo/SP) e F. Rider, Skant & Koia (Manaus/AM). No escopo de questões trazidas pelas montagens estão a tarefa de “dinamizar o  cenário geográfico expandido” e criar os espaços para “uma interlocução polifônica entre os discursos presentes em corpos não-binários, os expedientes das práticas xamânicas ameríndias, os neologismos da poética de Manoel de Barros e a  reflexão presente na dramaturgia do romeno Matéi Visniec”.

            Entre os trabalhos que agora aportam em São Paulo está “MOMO – um ato poético para testemunhas”, do grupo Usina (apresentação na Sexta, 20). É uma contundente intervenção cênica, sob a guarda do espírito artaudiano e na linhagem das narrativas autobiográficas. O ator paraense Alberto Silva Neto faz ali uma arqueologia pessoal e familiar, a partir de cartas trocadas entre seu pai e seu avô. O “acompanhamento psico-poético” é da encenadora Wlad Lima.

            O espetáculo ilustra perfeitamente o que parece ser o traço comum ao conjunto das montagens, que conta com trabalhos fora da expectativa regionalista do público médio e da crítica sudestina. Os coletivos apresentam trabalhos experimentais, com temáticas, linguagens e soluções cênicas que afirmam a cidadania estética autônoma dos teatros criados fora do Sudeste, fugindo deliberadamente aos enquadramentos.

            CENA ABERTA reproduz, a seguir, o artigo crítico do jornalista paraense Ismael Machado sobre o espetáculo. Agradecemos pela cessão.

            As apresentações de todos os espetáculos são gratuitas e em São Paulo acontecem no Complexo Cultural Funarte. Confira a programação completa e o serviço ao final desta matéria.

“MOMO – Um ato poético para testemunhas”.
Foto: Octavio Cardoso.

Sobre MOMO e Alberto Silva Neto

Por Ismael Machado

O psiquiatra José Ângelo Gayarsa, que se notabilizou por fazer ‘sessões e consultas’ na televisão, costumava dizer que a família- pelo menos a nossa família tradicional ocidental- era fonte das nossas maiores mazelas e traumas psíquicos ao longo da vida. Creio que Nelson Rodrigues assinaria embaixo dessa afirmação com um largo sorriso no rosto.

É difícil olhar ao lado ou mesmo internamente e não ter uma sensação de que nossas fissuras emocionais não são causadas por esses anos de convivência familiar, negociando emoções, suprimindo dores, alimentando fantasmas de rancores, invejas e solidões. Há saída? Difícil dizer.

Alberto Silva Neto encontrou uma. Ou não, vá se saber, numa filosofia caetânica, de resto um ícone na vida de Alberto. Expor as fraturas e as feridas de um relacionamento com o pai e, por tabela, com um avô não conhecido (e que personagem fascinante) foi um modo de o ator Alberto exorcizar o pai, o avô, a família. Prestar homenagem ainda que às vezes sombria, foi uma solução para alguns demônios, anjos noturnos que podem atravessá-lo em noites perdidas, deitado na rede e olhando a cidade do alto.

Momo, o espetáculo exorcismo, o monólogo das entranhas, a peça divanesca, o teatro testemunho, ou qualquer outra definição que queiramos ou possamos dar é, antes de tudo, um atravessar por um terreno pedregoso. Sim, estamos vendo as águas do mar, a praia lá adiante, mas para chegar até ela, é necessário talvez cortar os pés nas pedras afiadas que nos separam dessa suposta recompensa. Não, não nos iludamos. Como o personagem em determinado momento, precisaremos arrancar fora os calçados e encarar os passos nus.

Alberto Silva Neto é um monstro. É um artista-ator que chegou a um momento de plenitude dramatúrgica onde a palavra assombro talvez seja a melhor a nos definir quando o assistimos em cena. Sou testemunha disso. Alberto fez parte de meu primeiro longa de ficção, Flashdance TF e eu, que sempre o cogitei para o papel desde a escrita do roteiro, admito não estar preparado para o que presenciei de forma tão íntima e tão intensa. Cláudio Barros, outro gigante amado, não me deixaria mentir.

Em Momo, Alberto se despe e se veste. Se traveste de armaduras e as joga longe. Ao encarar a vida e a morte do pai, entre cartas, recortes, missivas que mais parecem uma garrafa jogada ao mar, ele nos amarra ao pé da mesa da escuta. Só que essa escuta não é isenta de dor. Ela nos leva aos nossos próprios assombros, nossos escuros, ali onde algo nos escava feridas, nos atropela memórias. É dor feito gozo, como cantariam Gonzaguinha ou Djavan, que já abordaram essas funduras em letras musicais. Ou aquilo que Caio Fernando Abreu sempre dizia, sobre a dor de criar algo que é verdadeiro, no sentido não da palavra verdade, mas aquela coisa que não nos deixa mentir quando o espelho nos mira de volta nos sombrios momentos de solidão urbana.

O que Alberto busca e ele costuma enfatizar isso, é ultrapassar a barreira do mero ser-estar ator e ir um pouco além. Ou muito além. Alberto grita e chora e ri e sussurra e se cala. E entre os olhos umedecidos ele sorri e confessa ser teatro o que faz. Mas é uma armadilha também, pois nunca é só teatro. A vida pulsa. No efêmero e no eterno.

Há vícios e virtudes no caminho de qualquer artista. Egos impelidos a criar e dizer e mostrar algo que são como portas entreabertas, janelas que iluminam porões empoeirados, onde o fogo que queima gera uma cinza pouco acessível. Não é uma tarefa fácil sacudir os esqueletos de cada armário.

Em Momo há as compreensões e incompreensões sobre os papéis de cada um numa história masculina. Paternar. O pai, o filho, o desamparo materno, o pai que somos, os filhos que fomos, o futuro e o passado que se embolam. Onde o abraço? Onde o encontro? A voz tonitruante imperativa. A voz do pai. A voz do medo. Da distância, do afeto suprimido. Pai. Descasquemos as peles, arrancando as cascas de ferida. O que nos sobra?

Alberto entrega e pede de volta. Reclama compreensão e aceitação. Esse sou o eu descarnado. Talvez não seja. Talvez seja apenas teatro. Mas se teatro é vida, é a vida que está sendo jogada em nós?

Ou é simplesmente mais uma folia de momo num carnaval de ruas desertas?

O palhaço chora. E eu o observo de meu próprio picadeiro. Alberto?  Esse quer se equilibrar na corda lá em cima. A pergunta que me faço é: há rede para amparar a queda, se houver?

Ave, Alberto. Te saúdo.   

A Fabulosa História do Guri-Árvore. Grupo Fulano Di Tal
Foto: Johnny Faustino

SERVIÇO

Encontro MOITARÁ Complexo Cultural Funarte SP – Alameda Nothmann, 1058 – Campos Elíseos

De 19 a 22 de Junho 2025 nos seguintes horários:

Dia 19.06 às 16h – Exibição de ESCAMBO.doc e bate-papo com os coletivos participantes do projeto

Dia 19.06 às 20h – apresentação de Com os Bolsos Cheios de Pão, com a Cia.Cisco (São Paulo/SP)

Dia 20.06 às 20h – apresentação de MOMO – Um Ato Poético para Testemunhas, com o Grupo USINA (Belém/PA)

Dia 21.06 às 16h – apresentação de HUMA/, com F. Rider, Skant & Koia (Manaus/AM)

Dia 22.06 às 16h – apresentação de A Fabulosa História do Guri-Árvore, com o Grupo de Teatro Fulano Di Tal (Campo Grande/MS)

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