O particularismo, o intimismo e o psicologismo que marcam ainda hoje muitas leituras da dramaturgia do russo Anton Tchékhov (1860-1904) não foram anteparos para a Companhia do Latão, grupo que, desde 1997, desenvolve pesquisas sobre o teatro épico, que vão na contramão de uma encenação ilusionista de enfoque sentimental. Em Lugar Nenhum, espetáculo com dramaturgia e direção de Sérgio de Carvalho, o universo temático e formal de Tchékhov serve de inspiração para um espetáculo que, dentre outras coisas, põe em debate “os arranjos perversos e tipicamente brasileiros”. Antes de mais nada o grupo parece estar em sintonia com um tipo de perspectivação tchekhoviana, a qual, segundo o diretor, expõe as contradições, é irônica e sem idealizações. É como se a dimensão psicológica das personagens fosse sempre mostrada do ângulo da condição social. Nesta entrevista exclusiva ao Cena Aberta, Sérgio de Carvalho fala sobre as etapas de produção de Lugar Nenhum, situa o lugar desta montagem na trajetória do grupo e avalia o quanto a situação doméstica apresentada na trama é atravessada pelas pressões sociais, que vão da violência policial da ditadura brasileira à nossa herança colonial. Um espetáculo que é não só uma “homenagem de um admirador”, mas a tentativa de mostrar a afinidade de Tchékhov com o tempo brasileiro.
Cena Aberta: Tchékhov parece ser sido a base da dramaturgia de “Lugar Nenhum”. Como se deu o interesse de um grupo reconhecido pela discussão social por um dramaturgo geralmente lido em chave psicologizante e intimista? Seria a negação ou o redimensionamento das crises íntimas tchekhovianas?
Sérgio de Carvalho: Sou um entusiasta da obra de Tchékhov. Para além da admiração literária, me pareceu, desde a primeira leitura, um autor de sensibilidade incomum. Gerou em mim um sentimento comparável ao que eu tive quando li Machado de Assis: tudo era perturbadoramente verdadeiro, as figuras comoventes e ao mesmo tempo criticáveis, por vezes absurdas, desastradas, sendo o conjunto todo “negativo”, numa estrutura de acontecimentos que me parecia arbitrária e mesmo injusta, abalando minhas convicções. Com o tempo fui vendo que Tchékhov move o leitor a uma atitude de imaginação e pensamento que se realiza contra a própria narrativa, nisso também muito semelhante a Machado. Então, quando fui estudar as peças, pude perceber que a dimensão psicológica daquelas figuras em cena era sempre mostrada do ângulo da condição social, a subjetividade vem atravessada por mundos do trabalho, são comportamentos relacionais em que o aspecto íntimo expressa uma situação histórica. A paixão de Macha por Trépliov em A Gaivota, e seu “luto pela vida” em relação a Medvedenko, são movimentos da alma de uma moça que é filha do administrador da fazenda, e quer ser algo mais do que isso, bem como o desejo de Nina pelo escritor Trigórin se alimenta do prestígio mercantil do escritor de sucesso. Em Tchékhov a questão psíquica se liga à vida material: estão em unidade contraditória. De outro lado, existem os empregados silenciosos servindo o chá nos samovares, ou cuidando dos cavalos da propriedade, que aparecem como contraponto ao drama inoperante de seus patrões. São eles que circunscrevem a melancolia da casa grande como melancolia de classe. Acho, portanto, redutora a leitura mais comum – visível em tantas encenações – que representa as personagens de Tchékhov como se fossem um “grupo de vítimas” que monologam sobre seu desespero à espera de uma simpatia última do espectador por um suposto “fundo humano” comum a todos nós. Não me parece que Tchékhov mostra vítimas, e sim participantes mais ou menos envolvidos na reprodução social do estrago. São personagens mostradas através de sua obsessões ideológicas e afetivas, sofrem e manifestam ideias-fixas, sendo, portanto, tecnicamente “cômicas” na medida do uso ostentatório de sua consciência sobre os próprios problemas. É curioso que muitas peças contemporâneas reproduzam a forma dita tchekhoviana do “grupos de vítimas” que tagarelam sobre a própria solidão e incomunicabilidade, em estruturas paisagísticas, peças que se querem “não-representacionais” e “pós-dramáticas” mas que reafirmam dramaticidades difusas através de jogos paródicos de auto-exposição. Há muitas dessas peças feitas de vozes que se “autofalam” entre a generalidade existencial e o detalhismo particularista, numa polifonia orquestrada ritmicamente e que, após um ápice de energia, chegam ao silêncio solene, num vazio autocomplacente. Tchékhov, distante disso, escolhe a imagem concreta, crua, nunca abstrata. Aposta na ironia e na contradição, e não idealiza. Desconfia da Arte como conceito legitimador, mas não como prática de vida. Nisso, ele pode parecer um escritor menos esperançoso do que Tolstói, seu grande modelo no que se refere às relações entre o gesto subjetivo e o gesto social. Mas no fracasso do drama individual mostrado no presente, ele convida o espectador a outros atos coletivos, em outros tempos da história. Decidi escrever Lugar Nenhum como uma homenagem de um admirador, e procurei mostrar sua afinidade com o Brasil.
CA: Na peça, familiares se encontram para celebrar o aniversário de 22 anos do filho, no final da ditadura. No entanto, o diálogo, o encontro e o próprio convívio parecem impossíveis. O que o motivou a partir desta situação? Ao mesmo tempo, o espaço da ação é uma propriedade familiar do período colonial. O que essa ambientação sugere?
SC: Também na ambientação de Lugar Nenhum procurei seguir o método de Tchékhov. Em suas grandes peças, ele situa a ação numa espécie de “entrelugar”. Os protagonistas cultos da cidade retornam à fazenda, da qual ainda dependem, seja como fonte de renda, seja pelo estatuto social ligado ao passado senhorial. São temas centrais de O Jardim das Cerejeiras, em que a propriedade decadente não pode ser mantida e será arrematada pelo filho de um ex-servo; e mesmo de A Gaivota, peça em que a maior ofensa da mãe é xingar o filho de “pequeno burguês” ou “burguesinho” de Kiev. Em As Três Irmãs o esquema é diferente, mas o princípio é o mesmo: a casa em disputa é um fantasma da ordem imperial e militar do passado. Em todos os casos, entra em cena, mesmo que indiretamente, o passado recente da servidão russa que gerou uma “elite” culturalizada e parasitária do fundo social. Situei a ação de Lugar Nenhum numa antiga fazenda litorânea já improdutiva há tempos, na região de Paraty (RJ). Foi uma fazenda de produção de cachaça que chegou a pertencer a um leitor de Fourier, socialista utópico. Sobre as ruínas, que incluem as pedras da antiga senzala, está construída uma moderna casa de praia, que pertence a uma atriz famosa, da televisão, que se encontra, naquele início de anos 1980, numa crise com seu trabalho no teatro. Eu me inspirei na trajetória de Dina Sfat, atriz notável, cuja biografia me foi apresentada por Helena Albergaria. A peça dialoga com alguns dos temas que procurei desenvolver em Ópera dos Vivos, conjunto de peças sobre cultura e política no Brasil dos anos 1960. A diferença é que Lugar Nenhum mostra um encontro familiar, um aniversário de um rapaz, portanto uma situação doméstica, mas completamente atravessada por pressões sociais variadas, que vêm de fora ou que já estão internalizadas: a da sobrevivência mercantil, a dos ideais artísticos mais ou menos progressistas, da violência policial da ditadura, da herança colonial, do racismo estrutural, da incapacidade de se mobilizar pela dor dos outros (a perda da “medida ética fundamental”, na expressão de uma das personagens da peça).
CA: Assim como em muitas peças de Tchékhov, os protagonistas são artistas e intelectuais, circundados por eventuais criados. O tipo de impasse no qual esses grupos sociais se encontravam no final do XIX na Rússia é de algum modo afim aos impasses dessas personagens em “Lugar Nenhum”?
SC: Eu escolhi situar a ação de Lugar Nenhum no início dos anos 1980, fim de ciclo da ditadura, porque foi uma época de esperança democrática e ao mesmo tempo de extrema violência conservadora, como a do atentado do Riocentro ou da polícia nas periferias. Ali, dos porões da ditadura, surgiu uma ultra-direita que gerou criaturas como esse nosso atual presidente. Já tínhamos discutido o período de um ângulo mais esperançoso e coletivizador, o dos trabalhadores da indústria automobilística, em O Pão e a Pedra, sobre a greve do ABC de 1979. O momento cultural do país, então, não era exatamente o de um impasse porque havia a expectativa de redemocratização. Mas havia, por outro lado, a percepção de uma crise de referências daquela que foi a nossa melhor tradição de arte moderna, a nacional-popular, ao menos nas reflexões e sentimentos dos artistas mais avançados. É com essas figuras de crise que procurei dialogar, tendo em vista a retomada do interesse nesse imaginário a partir dos anos 2000. Tentei, assim, examinar a dificuldade de alguns artistas em compreender o seu próprio trabalho quando o movimento histórico que os alimentou se modifica, e parece agora incompreensível, momento em que se dissipam as condições comunitárias necessárias à representação artística – situação em que nos encontramos hoje. A minha hipótese, na peça, é que a impotência aumenta na proporção em que esses artistas se isolam nas próprias questões, e passam a encenar as próprias dores e descobertas, também em seu cotidiano, acreditando, – às vezes com o aplauso de seus pares -, que praticam alguma espécie de revolução interior que contribuirá, magicamente, para a melhoria estética da humanidade. Existe uma frase muito famosa de Walter Benjamin sobre a identidade entre os “documentos da cultura” e os “documentos da barbárie”. Ela lembra que as tradições culturais das sociedades letradas não devem sua existência apenas ao esforço dos artistas e intelectuais que a criaram, mas também à escravidão anônima de uma multidão de pessoas. Evidentemente esse problema é do conjunto social e não pode ser resolvido de dentro da arte, num nível puramente formal, porque não se combate a miséria (nem mesmo a própria) numa luta travada apenas “do interior”. Mas não devíamos ter grande ilusões sobre o funcionamento social da arte. Por outro lado, sem alguma espécie de descolamento do real (mesmo que na forma de alguma modalidade crítica de idealismo) não se sonha utopicamente, o que é necessário para a prática verdadeira da arte. A questão cada vez mais difícil é conseguir que algum ideal de liberdade e de diferença venha a se realizar como construção coletiva.
CA: Muitas montagens de Stanislávski para as peças de Tchékhov valorizaram a musicalidade, a criação de uma atmosfera e, nos momentos de maior pendor naturalista, um pontilhismo cênico em que abundavam sonoridades e objetos. Já a encenação do Latão de “Lugar Nenhum” traz um palco minimalista e valoriza uma dimensão narrativa e pouco visual. Seria uma leitura de Tchékhov via Brecht?
SC: Há muitos caminhos que conduzem à ficção. Sempre gostei, como encenador, de mobilizar a imaginação do público, de convocar – como fazem tantas tradições teatrais populares – aquela “colaboração imaginária” do espectador para que enxergue além do visível. Então, às vezes, um palco vazio ou uma composição mínima são elementos que podem estimular esse trabalho imaginário. Mas a ficção pode ser estabelecida de outros modos, também pela riqueza de detalhes caracterizadores visíveis em cena. Nos espetáculos da Companhia do Latão procuro combinar uma atuação intensa, não demonstrativa, concreta, vivencial, frequentemente realista e baseada na ação relacional (e nesse sentido, me considero um diretor rigorosamente “stanislavskiano”) com estilizações narrativas e eventualmente performativas, que surgem da enunciação poética da fala, dos gestos em suspensão, ou da operação cênica exposta, procedimentos que costumam ser considerados “brechtianos” mas que estão presentes em todas as tradições não-dramáticas. Lugar Nenhum tem a peculiaridade de que a cenografia foi criada por mim com a colaboração de um parceiro cenotécnico, o Valdeniro Paes. Então, parte de sua economia tem a ver com o fato de ser a primeira experiência de um cenógrafo que procurou servir à dramaturgia. Só me arrisquei na decisão de pôr em cena o telão pintado da mata atlântica ao fundo, no estilo do espetáculos do século XIX, apostando no atrito entre sua bidimensionalidade e a estrutura de uma casa de praia apenas indicada. Mas fico contente com o resultado geral do espetáculo, com sua precisão, e suas rupturas geradas pela força e beleza das ações do elenco em cena.
CA: O título “Lugar Nenhum” parece sugerir mais uma metáfora temporal que espacial. Na peça, gerações debatem entre si, estruturas sociais coloniais se mostram parte essencial do moderno e o presente parece de algum modo disfuncional, pois cada personagem está sintoniza a uma temporalidade distinta. Seria “Lugar Nenhum” retrato do impasse de um “tempo brasileiro”?
SC: Acho que é uma boa interpretação. Talvez a peça trate mais de tempos do que de espaços. Há nela muitos tempos históricos que pressionam as personagens em sua dificuldade de interação com os outros e fugas para as abstrações fáceis: o jornalista se move profissionalmente para o futuro de uma mídia de entretenimento, na procura de se afastar psicologicamente de sua origem pobre: seu conservadorismo político vem dessa necessidade de adequação; o cineasta tenta retomar o passado recente de um cinema experimental brasileiro capaz de dar conta de nossa “irrealização” nacional, mas também está apertado pelos novos padrões do mercado; o músico que combinava atuação contracultural e militância política decide sair do tempo histórico para “catar plástico” na praia; os caseiros caiçaras se escondem assombrados pelos cadáveres dos dos grupos de extermínio etc. Acho que essa combinatória de várias temporalidades dentro de um mesmo processo dramático, feito de lutas entre “o velho e o novo”, é uma questão que interessou ao Tchékhov, ao Brecht, e que também é uma marca da minha produção dramatúrgica com a Companhia do Latão. No nosso caso há uma particular atenção aos arranjos perversos e tipicamente brasileiros dessas interações de processos, às vezes completamente ambíguas.
CA: Como foi o processo de concepção da dramaturgia e de montagem do espetáculo? Há algo na feitura de “Lugar Nenhum” que a torne muito específica na trajetória do Latão? Qual o lugar dessa peça na trajetória do grupo?
SC: De um ponto de vista temático, Lugar Nenhum dialoga com questões que me interessam há muitos anos, sobre o trabalho de mediação cultural num país em que qualquer conceito de cultura é absurdo pois sequer se aparece com uma construção de ideologia, dispensando a necessidade de vínculo de semelhança com o real. Como vemos cada vez mais, a estrutura “performativa” do capital se mostra como força cultural, e isso já é uma realidade antiga no Brasil. Talvez a especificidade da peça esteja na sua dimensão negativa: na hipótese que o “drama brasileiro”, entendido como o esforço de representação de um povo brasileiro conduziu a “lugar nenhum”. E, evidentemente, essa hipótese nos diz respeito. A peça não é só sobre a geração de artistas dos anos 1960 e 1970, mas sobre o próprio teatro de grupo que realizamos nos últimos 20 anos, numa circunstância histórica diferente. Isso não quer dizer que os percursos, lá e cá, não tenham sido produtivos e importantes, diante de suas possibilidades. Para mim, ainda, a peça traz um aprendizado formal: foi escrita como um exercício amoroso, enquanto adio a desejada montagem de um texto de Tchékhov. Mas só ao escrevê-la pude avaliar a atualidade da técnica de expansão da consciência dramática das personagens até sua reversão irônica. Então, nesse sentido, Lugar Nenhum acabou por se tornar, para mim, uma peça muito especial e que me permite perceber formas variadas de uma “subjetividade social” formada no passado escravista e no rentismo internacionalizante e que, mesmo quando não sabe disso, colabora para a miséria brasileira. Junto com o O Pão e a Pedra, peça com a qual dialoga, Lugar Nenhum estabelece para mim uma orientação artística de longo prazo. Considero esses dois trabalhos guias dramatúrgicos para tempos difíceis.
LUGAR NENHUM (adaptação para o Teatro #EmCasaComSesc e com transmissão do palco do Sesc Ipiranga)
Atuação: Beatriz Bittencourt, Carlos Santos, Érika Rocha, Helena Albergaria, Ney Piacentini e Ricardo Teodoro
Música e atuação: Cau Karam e Nina Hotimsky
Participação especial: João Filho
Voz do policial: Rogério Bandeira
Cenografia: Valdeniro Paes e Sérgio de Carvalho
Pintura do telão: Marcelino Fernandes
Figurinos, adereços e colaboração na cenografia: Carlos Escher
Assistência de figurinos: Ruth Melchior
Iluminação: Melissa Guimarães
Transcrição musical das canções guarani mbya: José Calixto Cohon
Colaboração Dramatúrgica: Helena Albergaria
Produção Audiovisual e Assistência de Pesquisa: Mauricio Battistuci
Cineasta: Affonso Uchôa e João Dumans
Assistência de Direção e Pesquisa: Maria Lívia Goes
Produtora Associada: Natália Salles
Produção: Pedro Freitas
Dramaturgia e Direção: Sérgio de Carvalho