Povoar o presente de futuro

Fabia Mirassos em cena de Vienen por mí. Foto: Susan Sena.

Crítica ao espetáculo Vienen por mí, com idealização e performance de Fabia Mirassos e direção de Janaina Leite.

Por Rodrigo Nascimento – Especial Festival de Curitiba.*

Há tensão quando a anfitriã nos recebe. As mãos nervosas, o olhar fugidio, os pés em busca de apoio firme. Talvez tenha ensaiado um primeiro contato mais convicto ou cheio de “teatralidade”, mas a atriz Fabia Mirassos está assim: com a emoção em estado de nudez. É o corpo de uma atriz travesti sozinha em cena. “Cá estou eu”, ela diz. A voz soa embargada: “Estou nervosa”. 

Esse dimensionamento do encontro pelo avesso do espetáculo, por aquilo que nos convida a um tipo de conversa íntima, em busca de cumplicidade, define o tom inicial de Vienen por mí, dirigido por Janaina Leite, que compõe a Mostra de Solos do Festival de Curitiba de 2023. E se um solo sugere logo de saída um tipo de encontro arriscado com o público – algo da investigação vertical de uma subjetividade, de um corpo ou de um problema que exige um tipo de vitalidade outra na atuação –, a presença cênica de Mirassos por si só cativa. Ao abrir o teatro ela já nos coloca nesta zona cinzenta em que material pessoal e material ficcional não estão mais nítidos (estará realmente nervosa?). E esse desenho de uma fragilidade a um só tempo inquiridora e delicada se torna, de longe, um dos elementos mais significativos do espetáculo.

Mas a consciência do risco, antes mesmo de ser um problema formal, é um dado da existência. É como se ela nos interrogasse: Quem são vocês aí na plateia? Como encaram a presença de uma mulher travesti em cena? Terão algum dia conhecido de verdade uma travesti? Já terão vocês sentado ao lado de uma em sua cozinha? Contornar o nervosismo é, portanto, fortalecer-se para que a mensagem não sucumba à ameaça em potencial, mas é também uma forma de interrogação: em que medida nós não somos coniventes com esse sistema que acua e aniquila? 

O trabalho com esse desconforto, que é material estético potencialmente poderoso, de algum modo percorre trabalhos importantes da atriz, que tem trajetória vigorosa no teatro. Em Luis Antonio-Gabriela, da Cia. Mungunzá de Teatro (dir. Nelson Baskerville, 2018), Fabia Mirassos vive o duplo confronto de Gabriela: o da travesti com a materialidade de seu corpo em transição e o dela própria com o desconforto transfóbico dos familiares, que não sabem como lidar com sua condição. Em jogo, estão as representações sociais do “abjeto”, os imaginários construídos sobre corpos que, antes de serem acolhidos em sua humana complexidade, são reduzidos às representações da deformação e da doença.

Fabia Mirassos em cena de Vienen por mí. Foto: Susan Sena.

Aliás, é sobre essas deformações do imaginário que trata a dramaturgia de Vienen por mí, escrita pela chilena Claudia Rodriguez. Nesse manifesto poético, reverbera a consciência de que até agora todos “falam por mim e contra mim” e, aos poucos, desenha-se a ideia de que qualquer humanização desse corpo travesti – na vida, em cena – não pode ser concebida sem a interrupção da insidiosa produção de imaginários de morte e apagamento. É preciso um outro roteiro. Instala-se a pergunta, que ecoa insistentemente: “Sobre o que temos que falar nós, as travestis?”, ou melhor, “Do que a travesti quer falar?”. Mas fazer o movimento inverso não é simples.  As referências, ao contrário do que acontece na cisgeneridade, sempre foram atravessadas por violações e ódio. Assim, o desenho do próprio discurso é tateante, recortado, composto por imagens violentas que vão se acumulando em uma fala acelerada.

A autora batizou esse seu trabalho de “dramaturgia pobre” – parte de um projeto estético-político de intervenção em restaurantes, ruas e praças. Um discurso visceral que aposta na própria performatividade e, ao fim e ao cabo, está no centro do projeto cênico de Janaina Leite e Fabia Mirassos. Mas aqui não se trata do atrito inesperado com pessoas desconhecidas na rua. Em cena, somos convidados a um outro tipo de acordo, baseado menos no enfrentamento e mais em uma poética do sussurro. Todo o movimento da atriz evoca um bailado sutil, com o qual ela nos convida à sua cozinha e, aos poucos, prepara um aperitivo. Se as palavras denunciam o repúdio a todos os imaginários do corpo travesti como objeto de diversão, como parte de um circo dos horrores ou como como repositório da doença, o movimento corporal é o da humanização pela miudeza, como que a nos reeducar pelo avesso de nossas projeções.

Mas é nesse arranjo que parece haver um impasse, como se uma coisa não reverberasse na outra e tirasse certo vigor performativo da cena. Algo que na dramaturgia convida ao grito do manifesto e ao risco, em cena está apenas esboçado na forma de uma potencialidade. Surgem questões: os poucos objetos no palco estão ali como mero acessório ou compõem uma tensa – e pouco explorada – trama de imagens evocativas? A faca que corta a beterraba seria o fio do corte e da morte que sempre ronda? O vermelho da beterraba que aos poucos mancha as mãos seriam os milhares de corpos mutilados, violados? Se o verbo rasgado e fragmentado denuncia, a presença corporal parece insistir em outra direção. 

Ao final, a sensação é de que a performatividade de algum modo se acanha diante de uma pretensa força retórica do texto, restando a dúvida: seria falta de vigor performativo ou apenas a confissão pelo gesto de que a existência é essa coisa recortada, esse arranjo desamarrado em que é preciso ser tudo isso – ou ter o direito a ser tudo isso – ao mesmo tempo?

Fabia Mirassos em cena de Vienen por mí. Foto: Susan Sena.

Um tempo outro

Se ao longo dos anos 1980 e 90 muito das representações teatrais e cinematográficas da comunidade LGBTQIA+ comprimiram a imaginação sobre suas existências em imagens melancólicas e doloridas (quando não as relegaram ao completo apagamento), o solo de Fabia Mirassos reivindica uma outra via. Vem na esteira de um conjunto de produções contemporâneas que fabulam essas existências fora das aniquiladoras dramaturgias de obituário. Reverbera em todas elas aquele imperativo já lançado pelo filósofo Vladimir Safatle, segundo o qual o primeiro desafio para recuperarmos nossa imaginação política é fazermos a crítica aos afetos melancólicos.

E talvez esteja na instalação de uma temporalidade outra mais um elemento poderoso do solo de Mirassos. O ritmo desacelerado, que evoca um cotidiano feito de pequenos movimentos, é atravessado frequentemente pela temporalidade do trauma e da lembrança das milhares de pessoas mortas pela violência homofóbica e transfóbica. O presente que segue tranquilo entre um e outro gole de vinho é golpeado pela lembrança da própria atriz de quando seu passado não tinha futuro: “Eu nunca acreditei que poderia viver para além dos 35 anos de idade”. Mas aos poucos, contra todas as fantasmagorias do medo que mortificam a imaginação, a cena também se deixa ocupar pelas vozes de outras “manas” (Ave Terrena, Renata Carvalho e Maria Leo) – todas embebidas de futuro: anunciam que querem falar sobre a Guerra da Ucrânia, sobre sonhos, sobre entregar-se a mil devaneios… Querem falar sobre o direito à poesia. 

Ao final desse solo-multidão, logo somos tomados por uma delicada pulsão de vida. Contra todos os ultimados de extermínio e de morte, o coro travesti reverbera ali, em baixo tom, na intimidade de uma cozinha e em meio a um delicioso antepasto que nos é servido. É como se traduzisse as contundentes palavras de Jota Mombaça, que são também palavras sobre o futuro: “Não vão nos matar agora”.

Rodrigo Nascimento esteve presente no Festival de Curitiba e atuou como crítico a convite da curadoria. Este texto foi inicialmente publicado na página do Festival.

SERVIÇO:

Vienen por mí, com Fábia Mirassos
Temporada: 28 de abril a 21 de maio, sextas e sábados, às 20h30, e domingos, às 18h30.
Sesc Avenida Paulista – Estúdio 4º Andar – Avenida Paulista, 119, Bela Vista
Ingressos: R$30,00 (inteira), R$15,00 (meia).
Classificação: 16 anos
Duração: 50 minutos.
Capacidade: 20 lugares.
Sessão com tradução e interpretação em Libras no dia 19/05.

FICHA TÉCNICA:

Idealização e Performance: Fabia Mirassos
Texto: Claudia Rodriguez
Tradução: Carol Vidotti e Malú Bazan
Direção: Janaina Leite 
Assistente de Direção: Emilene Gutierrez 
Colaboração Artística: Carol Vidotti 
Desenho de Luz: Aline Santini 
Assistência e Operação: Luz Henrique Andrade 
Visagismo: Fabia Mirassos 
Concepção e Confecção de Figurino: Fabia Mirassos e Salomé Abdala 
Direção de Arte e Designer Gráfico: Renan Marcondes 
Áudios em Off: Ave Terrena, Claudia Rodriguez, Maria Leo Araruna e Renata Carvalho 
Sonoplastia: Ultra Martini 
Fotos: Hugo Faz 
Direção de Produção: Carol Vidotti

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