
Foto: Marcelle Cerrutti
Por Kil Abreu
Mário Negreiro, o espetáculo de Anderson Negreiro que faz temporada no Sesc Vila Mariana, é um trabalho de muita vitalidade. Vitalidade, podemos dizer, poética e aeróbica – pelo rendimento criativo conjugado ao notável empenho físico que está lá. Nessas bases, ele consegue ampliar uma abordagem que tendia a ser refém da didática, para fazer um diálogo cara a cara com o escritor modernista. Pretos, ambos, mas de tempos e lugares de classe diferentes, sob um Brasil de sofridas permanências mas também de bonitos vislumbres.
É um encontro que dá o que pensar quanto aos paralelos que propõe.
Em saltos temporais que vão de meados dos anos de 1940 aos dias atuais, o espetáculo procura atualizar questões antigas – como a da “identidade” nacional – às que estão na ordem do dia, sobretudo as que emergem nos novos movimentos e demandas vindos com a discussão sobre racialidades e fraturas sociais.
Da Casa Verde Alta para o coração da megalópole, o ator-personagem vai tentar entregar a um amigo de infância um exemplar de livro. Não sem deixar de passar pela dor, retratada em termos míticos por Mario de Andrade e em termos quase jornalísticos agora, quando se denuncia a rendição da vida em um dos países mais desiguais do mundo.
Num bailado entre a ficção e a performance e à frente de projeções que ilustram ou comentam criticamente o representado, Negreiro cria nova trajetória para um Macunaíma renascido, que agora não vai do campo para a cidade e sim da cidade para as suas bordas, de onde ele mesmo imagina partir. Caminhadas e correrias de pés descalços revividas em cena, a partir dali de onde, como disse o dramaturgo Allan da Rosa, “os calçados lustrosos são conhecedores do barro”. Por dentro e por fora dos “terrenos de residências coladas, logradouros com seus corredores longuíssimos e portões pequeninos”.
Por aí já é possível perceber que o espetáculo de Negreiro não é uma representação do livro. Inspira-se nele para criar uma história (ou várias histórias) relativamente autônomas, em que os percursos das personagens são espetaculares (ordinariamente espetaculares) mas nunca reconhecidos como tal. No entanto, ainda que não seja uma tradução cênica literal do texto, há alguns aspectos que simulam parentescos entre o escrito Andradiano e a montagem, em estrutura e sentidos.
Por exemplo, a obra de Mário muitas vezes nem mesmo é chamada de romance, dada a sua vocação experimental. Ele mesmo a batizou de “rapsódia”. Assim como no espetáculo, é uma espécie de colagem – de ações, acontecimentos – em busca de uma narrativa. Um arranjo, então, em busca de uma unidade que tende a escapar. Complexos brasis.
A Cena também tem esse caráter rapsódico.

Foto: Marcelle Cerrutti
Rapsódias
E o que é, grosso modo, a rapsódia? A rapsódia é a forma fundamental da oralidade, do contar tradicional. O rapsodo conta, assim como o romancista e o ator, quando narra. Na música a rapsódia é das formas de composição mais livres. Narrativas livres, pois. O mais interessante, do ponto de vista crítico, é verificar então a relação especular entre estes “contares”.
Em sua leitura o crítico José Miguel Wisnik chamou Macunaíma de um “verdadeiro enigma”, que ganha luz e importância sob a imaginação generosa do escritor, mas que, por paradoxal, cumpre a trajetória de um herói atípico. E o que seria hoje um herói atípico, nascido do povo, senão um garoto, uma garota da quebrada, no seu corre diário? É dessa encruzilhada entre a autoridade literária de Mario, os impasses de um personagem-emblema que não amadurece nunca (o próprio Brasil) e as demandas de um artista “periférico” politizado que o espetáculo se faz.
Mario de Andrade, presente em cena, a tudo observa. Não há dúvida de que ele sustentava uma visão terna, compassiva sobre o seu personagem, ainda que regressiva. Diferente de um Oswald de Andrade, mais aberto às inevitáveis interações que a modernidade traria, Andrade quase chora um Brasil que adiante vai mesmo entregar suas melhores joias, como as da cultura popular, para serem comidas um dia após o outro pela boca dentada do capital. Violentas alquimias.
Em ambos os casos – na trajetória mítica ou na lida dos meninos da favela que a peça representa – trata-se de uma totalidade buscada, que nunca encontra termo, que é sempre movimento e esforço de sobrevivência. Um quase romance inspira um espetáculo quebrado como a vida do andar de baixo. Um Brasil empenhado em buscas, pois.
Atestar, mesmo que involuntariamente, uma sociabilidade que se recusa à completude talvez seja o lance mais valioso da montagem. É sem dúvida mais interessante que a discussão sobre “identidade” e variantes, tema morto, que a dramaturgia ainda quer discutir, e que diz respeito a uma concepção politicamente estéril do “ser brasileiro”. Mário Negreiro é felizmente maior que esse fantasma ideológico e sua missão inalcançável. Para nós a história já mostrou – mais importante que a identidade em abstrato, é a invenção. Invenção não na imaginada unidade, mas no projeto do que pode ser motivo para a mudança. Entre alguns indícios de justa, inevitável melancolia, e um desempenho aceso do corpo e das ideias, o espetáculo sustenta-se vivamente no fio da meada dessa contradição.
- CENA ABERTA faz parte do projeto Arquipélago de fomento à crítica, apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : Ruína Acesa, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Agora Crítica, Tudo menos uma crítica e Satisfeita, Yolanda?
MÁRIO NEGREIRO
De 29 de Janeiro a 27 de fevereiro, quartas e quintas às 21h
Auditório do Sesc Vila Mariana – Rua Pelotas, 141 – Vila Mariana, São Paulo
75 minutos | 14 anos
FICHA TÉCNICA
Texto E Direção – Anderson Negreiro
Vídeo-Cenários: Vic Von Poser
Provocação Cênica: Viviane Dias e Ismar Rachmann
Provocação dramatúrgica: Jé Oliveira
Atuação: Anderson Negreiro
Voz off: Jé Oliveira
Atuação em vídeo: Sandra Corveloni e Ismar Rachmann
Trilha sonora: Gabriel Moreira
Criação de Luz: Anderson Negreiro e Jorge Leal
Figurinos: Éder Lopes
Cenário: Anderson Negreiro e Éder Lopes
Consultoria de movimento: Débora Veneziani
Operação de luz: Renato Banti
Operação de som e vídeos projeções: Tomé Souza
Coordenação de Produção: Anderson Negreiro e Mosaico Produções
Produção Executiva: Catarina Milani
Produção Administrativa: Cícero de Andrade
Assessoria de Imprensa: Rafael Ferro e Pedro Madeira
Fotografia: Marcelle Cerrutti
Arte Gráfica: Mau Machado
Assessoria de imprensa: Rafael Ferro e Pedro Madeira