Uma mostra para os teatros negros – entrevista com Aldri Anunciação

Por Rodrigo Nascimento

O ator e curador Aldri Anunciação: contra reducionismos

Idealizado pelo ator, diretor e produtor Aldri Anunciação, o Festival Melanina Acentuada surgiu em 2013, com o intuito de estimular o processo de criação e dar visibilidade às diferentes narrativas e poéticas negras. A 6ª. Edição da mostra aconteceu de 23 a 28 de Julho, em Salvador (BA).

Desde sua primeira edição no histórico Teatro de Arena de São Paulo, a tônica do festival é o combate à ideia de um teatro negro limitado a questões e formas específicas (o que, como destaca Aldri Anunciação, “é intelectualmente desonesto e reducionista”). Por isso, esta última edição também contou com espetáculos teatrais, oficinas, ateliês, mesas redondas, consultorias dramatúrgicas, compartilhamento de processos criativos, entrevistas e leituras dramáticas. Em conjunto, dão a dimensão da riqueza e pluralidade dos teatros negros contemporâneos.

Importantes espetáculos compuseram a programação do festival: “Macacos”, de Clayton Nascimento; “Namíbia, não”, de Aldri Anunciação; “Desfazenda – Me enterrem fora desse lugar”, do grupo O Bonde; “Desmontando a Casa”, de Mariana Freire; “Dandara na Terra dos Palmares”, de Antônio Marques; “Mais Prá Lá do Que Pra Cá”, de Fernando Santana e “O Avesso da Pele”, do Coletivo Ocutá (baseado no romance de Jeferson Tenório). O festival também foi marcado pela estreia nacional da Cia de Teatro da UFBA com “O Pregador – Teatro-Fórum Antirracista”, direção de Licko Turle. Além dos espetáculos, destaque importante do evento foram os ateliês de ideias, que levaram adiante discussões sobre a poética das narrativas negras e as intersecções entre teatro, cinema e literaturas negras contemporâneas.

Nesta entrevista ao CENA ABERTA, Aldri Anunciação fala, em forma de balanço, sobre esta última edição do Festival, as motivações por trás de seu surgimento e sobre como o evento acompanhou ao longo desses anos algumas das principais transformações vividas pela cena brasileira.

Espetáculo Desfazenda – Me enterrem fora desse lugar, com o grupo O Bonde. Foto: José de Holanda

Cena Aberta: O Festival Melanina acentuada já está em sua 6ª edição. Quais foram suas motivações para que ele surgisse?

Aldri Anunciação: Minha inspiração para esta edição se alinha com as motivações das edições anteriores, que é mostrar não apenas a vasta quantidade de autoria negra contemporânea, mas também os diferentes modos de teatro negro contemporâneo brasileiro. Muitas vezes as pessoas tendem a se fechar em uma ideia limitada do que constitui poeticamente um teatro negro, o que é intelectualmente desonesto e reducionista. É importante destacar a diversidade e a riqueza do teatro negro atual, celebrando suas múltiplas formas e expressões criativas.

CA: As edições do Festival atravessaram mais de uma década. Desde a primeira, realizada no Teatro de Arena, em São Paulo, até a edição atual, que acontece agora em Salvador, o que mudou em relação à cena dos teatros negros no Brasil? E o que mudou em relação ao perfil do próprio Festival?

AA: As transformações poéticas e estéticas no teatro negro brasileiro são reflexos diretos das mudanças que ocorreram no mundo ao longo desses anos. O teatro negro, assim como a sociedade em geral, passou por diversas viradas, refletindo as mudanças de percepção e recepção do mundo externo.

O Festival esteve presente durante momentos cruciais, como a constitucionalização das cotas em 2012, os protestos do movimento “Black Lives Matter” no verão de 2013, e trágicos incidentes raciais (João Pedro, Ágatha, Eric Garney, 220 balas, Georg Floyd etc) que ecoaram em todo o mundo. Esses eventos impactaram diretamente as narrativas do teatro negro, que passou a assumir a missão de subjetivar as questões raciais, colocando os sujeitos negros no centro da narrativa e buscando despertar a empatia do público não negro.

Uma das mudanças mais significativas ao longo desses anos foi a transição do teatro negro como mero veículo de denúncia para se tornar um verdadeiro bio-estimulador de empatia. O teatro negro passou a explorar a subjetividade negra, conduzindo as histórias de forma mais íntima e pessoal, levando o público a experimentar novas possibilidades estéticas e dramatúrgicas.

Essas mudanças no teatro negro brasileiro refletiram-se em cada edição do Festival, tornando-o um espaço de reflexão e celebração das diversas formas de expressão artística negra. Ao longo desses 12 anos, o Festival evoluiu para acompanhar e amplificar as vozes negras, abrindo espaço para narrativas autênticas e impactantes que desafiam e transformam o público.

CA: De modo geral, o que orienta a direção da programação desta edição?

AA:  Nesta edição do festival fomos guiados pela pulsante energia de uma mesma narrativa negra que ecoa tanto nos palcos quanto nas páginas dos livros, telas de cinema e nas redes sociais. O foco recaiu sobre a multiplicidade de linguagens nas narrativas negras, explorando a potência e a riqueza desta abordagem. Escolhemos espetáculos e atividades que estimularam debates e reflexões sobre os processos de adaptação de obras literárias para o teatro, peças que se transformaram em filmes e dramaturgias que ganharam vida em publicações literárias. Desde “O avesso da pele”, que compartilhou o processo de adaptação de um romance para o palco, passando por MACACOS, que migrou dos palcos para as páginas de um livro, “Namíbia, não!”, que teve sua história contada através de diferentes linguagens como livro, teatro e cinema, até DESFAZENDA que é um espetáculo que se debruça no assunto do longa-metragem “Menino 23”, de Belisário França, cada obra escolhida para esta edição trouxe uma riqueza de experiências artísticas interconectadas. Além disso, a programação deste ano estimulou o desejo de nas próximas edições termos lançamentos de livros, exibições de cinema negro e exposições de arte visual contemporânea, demonstrando a nossa intenção de explorar novas formas de diálogo artístico e ampliar as fronteiras da expressão cênica negra.

  • *CENA ABERTA faz parte do projeto Arquipélago de fomento à crítica, apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes : Ruína Acesa, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Agora Teatro, Tudo menos uma crítica e Satisfeita,  Yolanda?

SERVIÇO

O Festival Melanina Acentuada aconteceu de 23 a 28 de Julho, em Salvador, com espetáculos, encontros, ateliers e atividades paralalelas realizadas no Goethe Institut – Salvador, no Teatro Molière, na Casa Rosa e no Teatro Martim Gonçalves.

Idealização e Curadoria: Aldri Anunciação.

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