OTHON BASTOS NÃO SE ENTREGA, NÃO!

Othon Bastos, 91, em cena
Fotos: Ivana Moura

Por Kil Abreu

Podemos dizer que o ator Othon Bastos, aos 91 anos, é um fenômeno de energia e desempenho cênico. Mas em “Não me entrego, não” – espetáculo apresentado por esses dias no Festival Recife do Teatro Nacional – qualquer elogio quanto à sua performance, por mais eloquente que seja, não alcança o brilho da presença. O mestre é mesmo grande.

O espetáculo é relativamente esquemático na estrutura narrativa. Basicamente é uma “auto-peça”, um documento íntimo encenado que retoma pontos angulares da trajetória do artista, por ele mesmo, intercalando estados reflexivos de veio lírico, passagens cômicas e dramáticos.

Mas o que poderia ser um relato autorreverente avança com muita beleza para a composição do retrato, em lances rápidos, de um país e de um artista genial cruzando a história. Um ator assimilando e deixando-se assimilar pela invenção artística e pela inquietação política.

Por exemplo, quando da convivência e do trabalho com Glauber Rocha em alguns momentos altos do Cinema Novo. Deus e o Diabo na terra do sol. Corisco, a face dividida pelo punhal, nos observa e é observado no fundo da cena. É quase possível ouvir Sérgio Ricardo proclamando o dilema sertanejo, a peleja e a irmandade entre a exploração, a fé e o banditismo justiceiro: “Te entrega, Corisco. Eu não me entrego não!”.

Passos adiante, o próprio Othon explica os dribles à censura através da dramaturgia de Gianfrancesco Guarnieri. Um grito parado no ar como enfrentamento. Não menos denso, conta como é lidar com os desafios do ofício do ator diante de ânsias existenciais exaltadas como as de um personagem de Anton Tchékhov. Uma aula, em ato, para os nossos meninos e meninas que andam batendo cabeça em busca de instalar a “voltagem performativa”. Está tudo lá.

Othon nos mostra o que se costuma chamar de vocação. Algo que hoje confunde-se facilmente com o status do “bom desempenho”, ou seja, uma qualidade meramente técnica. No espetáculo é possível alargar essa visão. Ali o ator nos faz perceber que a vocação não existe em abstrato. É um tipo especial de devoção pelas tábuas que não dispensa a consciência política sobre as escolhas estéticas. No mundo da mercadoria, em que os artistas precisam posicionar-se mas também precisam fazer propaganda de margarina para sobreviver, a ideia de vocação, naqueles termos, já nos chega como escândalo.

Não me entrego, não! no Teatro do Parque/Recife

MEMÓRIA DIALÓGICA E DIALÉTICA

Na montagem dirigida por Flávio Marinho, a estratégia da memória como personagem em contracena é engenhosa. A figura representada pela atriz Juliana Medella não é só “ponto”, embora cumpra também essa função. É personagem-memória, viva não porque está ali para coroar a si, a ele, e sim porque está a serviço de afirmar fatos ou lembrar contradições no mesmo movimento com que se dialetiza a lembrança, com ternura mas também com franqueza. Podemos dizer que é uma memória antagonista, a avaliar as medidas reais da experiência, quase sempre com humor. Memória que dá mão à razão vigilante enquanto beija na boca a fantasia.

Do menino que fora aconselhado pela professora a fugir dos palcos ao ator imenso interpretando um personagem desgraçadamente dramático; do artista que sonha com uma carreira impossível na Inglaterra ao grande encontro com o cinema brasileiro; do espírito baiano livre à interdição na pele pela ditadura – Othon Bastos, amalgamado às criaturas e circunstâncias que até aqui representou, nos chega neste trabalho como um emblema que encarna, em forma de grande arte, os impasses de um país desde sempre fraturado, que mói sua gente e sufoca a promessa de tudo o que intua mudança e transformação . Mas chega também como o espírito jocoso e aceso dos que, apesar do horizonte nublado, não se entregam, não.

No momento, segundo dizem, “distópico” em que vivemos, trata-se não só de um ótimo espetáculo de teatro. É serviço de utilidade pública levado ao palco com a grandeza de um veterano. Que bom que o Teatro do Parque, com ótima plateia, e que os espectadores de Recife puderam tê-lo.

Não me entrego, não!

No Festival Recife do Teatro Nacional

FICHA TÉCNICA
Elenco: Othon Bastos
Texto e Direção: Flavio Marinho
Diretora Assistente e Participação Especial: Juliana Medela
Direção de Arte: Ronald Teixeira
Trilha Sonora: Liliane Secco
Iluminação: Paulo Cesar Medeiros
Programação Visual: Gamba Júnior
Fotos: Beti Niemeyer
Visagismo: Fernando Ocazione
Alfaiataria: Macedo Leal
Coordenação de Produção: Bianca De Felippes
Consultoria Artística: José Dias
Assessoria de Imprensa: Marrom Glacê Comunicação
Assessoria Jurídica: Roberto Silva
Coordenador de Redes Sociais: Marcos Vinicius de Moraes
Assist. de Diretor de Arte: Pedro Stanford
Assistente de Produção: Gabriela Newlands
Administração: Fábio Oliveira
Desenho de Som e Operador: Vitor Granete
Operador de Luz: Marco Cardi
Contrarregra: Paulo Ramos
Realização: Marinho d’Oliveira Produções Artísticas

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