Do trauma à trama – Entrevista com Sergio Blanco

Sergio Blanco: deslizamentos entre mundos
Foto: Darwin Borelli

Por Kil Abreu e Rodrigo Nascimento

  • O jornalista Kil Abreu viaja a convite do Sesc São Paulo

O dramaturgo franco-uruguaio Sergio Blanco é hoje um autor e diretor proeminente e tem suas peças montadas em vários países. Bastante festejado também no Brasil, é conhecido como um mestre na linhagem das autoficções. Sua teoria pode ser conhecida no ensaio  Autoficción, Una ingeniería del yo (2018), em que mapeia os pactos entre verdade e mentira que marcam profundamente o seu teatro. Estes mecanismos de criação podem ser observados (e vividos) em peças como Zoo, A Ira de Narciso, Tebas Land, O Bramido de Dusseldorf e, agora, em Tierra, espetáculo que tem sua estreia brasileira no festival Mirada, em Santos, e tem apresentações no Sesc Vila Mariana, em São Paulo (veja abaixo o Serviço) .

No repertório de assuntos explorados pelo autor estão os sentidos da violência e da liberdade, as dobras do desejo, a morte (a sua, a do seu pai e, agora, a da sua mãe). São temas recorrentes, imaginados em textos densos e engenhosos. O fundamental na maneira própria como Blanco tece a sua autoficção é, diz ele, o exercício de descoberta do outro. É uma atitude que tenta contornar o ensimesmamento relativamente comum ao gênero. Em seus duplos há uma busca, pode-se dizer, obstinada, por este “igual-diferente”. É algo que dimensiona a medida ética das suas histórias.

Nesta entrevista a Kil Abreu e Rodrigo Nascimento, Sergio Blanco fala sobre Tierra e comenta os modos como concebe a alteridade; a passagem do elemento psicanalítico (o trauma) à construção artística (a trama); e, ainda, a partir do seu trabalho, os impasses da “pós-verdade”, conceito hoje amplamente difundido para compreender as operações ideológicas da direita mundial.

Tierra: reviver a mãe
Foto: Nairí Aharonián

CENA ABERTA: Seu teatro parece sempre tentar dar conta de uma busca pelo «outro». Em «Tebas Land», por exemplo, dois personagens muito distintos se veem em zonas de contato bonitas e inesperadas. Como você avalia esta busca da alteridade em «Tierra», que tem como centro sua mãe? (Liliana Ayestarán).

SERGIO BLANCO O encontro com o outro é fundamental para mim porque acredito que, como bem diz Emmanuel Levinas, é o outro que nos dá vida com seu olhar. Portanto, por dever minha existência a esse outro, sinto que estou completamente em dívida com ele. É isso que faz com que o tema da alteridade esteja sempre presente em todas as minhas peças. Além disso, esse tema da alteridade se aplica perfeitamente ao teatro, pois a cena, para existir, depende da presença do espectador, que é aquele que, com seu olhar, dá existência à peça que está acontecendo diante de seus olhos. Em Tierra, esse tema da alteridade é central porque o personagem consegue reviver sua mãe morta por meio do encontro com outras pessoas. Mas também é esse encontro com outras pessoas que permite que ele perceba que não está sozinho em sua dor, e isso é algo que o alivia muito em meio ao seu luto.

Sua peça trata, dentre outras coisas, da perda e de como ela ainda reverbera no presente, através da articulação de diferentes experiências em cena. Sobre isso, você costuma dizer que seu trabalho como dramaturgo é fazer a passagem do “trauma” à “trama”. Comente um pouco sobre esse processo na criação de “Tierra”.

Acredito que o teatro tem uma enorme capacidade de cura graças ao poder da palavra. Quando o teatro coloca palavras onde havia dor, por meio desse procedimento linguístico ele consegue ativar um mecanismo de alívio. É por isso que eu sempre digo que se, onde houve um trauma, você consegue colocar uma trama (enredo) por meio de palavras, há um processo de cura que é ativado. A nomeação sempre alivia: ir do indizível ao decifrável é um caminho que traz calma e cura. As palavras e a linguagem têm esse extraordinário poder de cura quando o que era um trauma se torna uma trama (enredo). Mas, para conseguir isso, é necessário encontrar a palavra certa. Há uma bela passagem na liturgia católica que fala sobre isso quando diz: “Senhor, não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salvo”. Acredito que meu trabalho como dramaturgo é encontrar a palavra certa que pode curar. A cada dia estou mais e mais convencido de que o teatro tem esse poder de cura catártica. E essa cura ocorre não apenas em nós que fazemos teatro, mas também – e acima de tudo – naqueles que o assistem: o teatro acaba curando todos nós. Não é por acaso que os primeiros edifícios de teatro no mundo grego antigo foram erguidos perto dos templos do deus Asclépio, o deus da medicina.

Um dos aspectos do que se convencionou chamar de autoficção é o deslizamento entre experiências vivídas e experiências imaginadas. Isso é bastante evidente em seu trabalho. Hoje nós também vivemos, no campo da política, um uso livre das fronteiras entre verdade e invenção, sobretudo nos discursos de direita. O teatro pode oferecer algo a este debate, em um mundo cada vez mais refém desta indistinção?

Esse deslizamento do mundo do real para o mundo da ficção é algo belo e necessário no campo da arte e da criação. Nós, seres humanos, inventamos o espaço artístico como um lugar onde o peso insuportável da realidade é suspenso por meio da transformação dessa realidade. A arte é um espaço onde o real é mentido, exagerado, traficado, deformado, traído. Não temos um imperativo de fidelidade à realidade, já que a arte não é uma reprodução mimética, mas enigmática do real. Entretanto, esse deslize em direção à mentira é muito perigoso quando ocorre no campo da política. A pós-verdade, bem como o relativismo em termos políticos, é algo que deve ser combatido porque é o que leva à manipulação da opinião pública. A política não pode mentir para as pessoas pela simples razão de que seu trabalho não é suspender o peso do real, mas combatê-lo e melhorá-lo. A política não se articula em torno de mecanismos estéticos, mas éticos, e essa é a grande diferença em relação à arte: a política não é mentir para as pessoas, mas ajudá-las a melhorar suas vidas em meio a uma comunidade.

Você é hoje um autor bastante festejado. No Brasil, por exemplo, isso é muito marcante. O que pode nos dizer sobre as montagens brasileiras de suas peças?

Tive a sorte de ter tido várias encenações de meus textos no Brasil e todas elas foram de grande qualidade e um grande sucesso de público e crítica. Isso é algo que me dá grande prazer, pois confirma o que sempre defendi: a autoficção é algo que parte de mim mesmo, mas busca se conectar com os problemas universais que todos os seres humanos têm. Voltamos ao início desta entrevista: a autoficção parte de mim, mas sempre alcança os outros. No final, as coisas que acontecem comigo acontecem com todas as pessoas e isso é algo que nos conecta de forma intensa e bela. Os seres humanos não são ilhas, somos um arquipélago: estamos todos muito mais unidos do que pensamos.

* CENA ABERTA faz parte do projeto Arquipélago de fomento à crítica, apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : Ruína Acesa, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Agora Crítica, Tudo menos uma crítica e Satisfeita,  Yolanda?

Tierra

No Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas: 13 e 14 de Setembro – Teatro do Sesc Santos

Em São Paulo: Sesc Vila Mariana, 18 e 19 de Setembro

FICHA TÉCNICA 

Texto e direção: Sergio Blanco 

Intérpretes: Andrea Davidovics, Sebastián Serantes, Soledad Frugone e Tomás Piñeiro 

Design visual: Miguel Grompone 

Design de cenário e luz: Laura Leifert e Sebastián Marrero 

Design de figurino: Laura Leifert 

Design de som: Fernando Castro 

Operação de som ao vivo: Gerardo Hernández 

Operação de vídeo: Renata Sienra 

Preparação vocal: Sara Sabah 

Fotografia: Nairí Aharonián 

Comunicação em redes sociais: Matías Pizzolanti 

Coordenação técnica (Uruguai): Paula Martell 

Assistente de direção: Carolina Simoni 

Assistente de produção: Danila Mazzarelli 

Circulação: Leila Barenboim e Matilde López Espasandín 

Produção geral: Matilde López Espasandín 

Agradecimentos especiais: Roxana Blanco, Danila Mazzarelli e Agustín Moratorio 

Uma produção da Marea em coprodução com Dirección Nacional de Cultura (Uruguai), Centro Dramático Nacional (Espanha), Complejo Teatral de Buenos Aires (Argentina) e Centro Gabriela Mistral (Chile). 

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