Por Kil Abreu
O Coletivo Gompa, de Porto Alegre, firmou-se como um grupo criador de espetáculos de grande esmero visual, em que se recorre a leituras livres de fontes literárias e dramatúrgicas. Foi assim, por exemplo, em “Chapeuzinho vermelho”(a partir da versão de Joel Pommerat), assim como em “Instinto” (a partir de Ibsen, espetáculo também apresentado no Festival Recife) e, agora, em “Frankinh@, inspirado na ficção de Mary Shelley.
Frankinh@ é uma fábula pensada para as crianças que somos ou que fomos, e ultrapassa o repertório esperado de temas do teatro feito para os pequenos. A história de um garoto “diferente”, com inquietação intelectual e ânsias existenciais fora da curva. pode perfeitamente ser lida como a história de qualquer pessoa, criança ou adulta, que sinta-se por algum motivo estrangeira no próprio lugar – na família, no trabalho, na escola, nos outros grupos sociais.
E então é curioso que esta extensão possa ser lida, a depender dos horizontes afetivos de quem assiste, como uma parábola sobre a impossibilidade fundamental da convivência idealizada, aquela que nos parece justa. Depois de anunciar isto o Gompa passa a explorar as pelejas intimas, os fracassos e as pequenas vitórias cotidianas a que somos chamados para dar conta da vida e que, em última instância, nos fazem crescer. Ou diminuir, porque tem gente que, como sabemos, regride.
Inventividade cênica
Uma característica muito evidente nas encenações de Camila Bauer e do Gompa
é o pacto entre soluções técnicas e artesania. O que quer dizer, neste espetáculo, um arsenal de recursos de luz, som, cenografia, indumentária, que nos parecem mágicos, porque inesperados. Um efeito de luz que simula raios de trovão, um estranho saco que serve como útero de onde sai a criatura, uma trilha sonora e uma sonoplastia que amplificam os momentos de suspensão etérea das cenas, quando isto é pedido. São meios envolvidos em um trabalho técnico que nos parece muito apurado, mas que não são exibidos como se fossem o seu próprio fim. Parecem existir ali para dar conta de uma artesania rica em detalhes, preocupada com as miudezas formais da montagem. Vistas na dinâmica proposta pela direção, devem criar um interesse muito vivo na plateia. Do trabalho fisico-coreográfico do elenco aos jogos lúdicos com os materiais, em Frankinh@ seguimos acompanhando a narrativa deleitosamente. Como nos shows
dos velhos mágicos, os efeitos desfilam em surpresas, a pontuar a narrativa.
Em que pese a ótima presença cênica de Liane Venturella em uma personagem
que ao final, veremos, é uma espécie de “consciência envolvida” na história, o
espetáculo ainda se ressente de certo peso retórico. Mesmo com uma exímia voz narradora e um plano cênico bem afirmado, parece que é verbo demais. O que talvez sublinhe, paradoxalmente, alguma falta de fé na narrativa visual.
Por um lado há no espetáculo a demanda pelo exercício da alteridade, pelo
reconhecimento da diferença, algo hoje bastante afirmado na disputa social de valores. Por outro, há, subliminarmente, a idéia de que viver significa não só afirmar-se na liberdade própria como também participar solidariamente da liberdade do outro, da outra. E de que isso pode ter o preço de muitos desconcertos. As coisas começam a ficar mais difíceis quando somos testados a perceber que a esperada “harmonia na diversidade” também comporta aporias, conflitos irreconciliáveis.
É justo dizer que o espetáculo do Coletivo Gompa coloca em cena preocupações humanistas, e não pretende verticalizar todas as questões pautadas, apesar
de convocá-las. A história do menino Victor e da criatura imaginada por ele (ou o seu próprio duplo) , discutida no eixo de uma narrativa de passagem, de crescimento, traz uma quantidade razoável de contestações e
perguntas importantes nada fáceis de conduzir. Por exemplo, sobre o que é, enfim, a vida; sobre como se constrói a idéia de normalidade e, a partir dela, a de estranheza. Sobre a que serve, nas pequenas metafísicas do poder, a instituição da diferença – esta
faca de dois gumes. Enfim, não são poucos os temas. Que o coletivo faça isso
delicadamente não deixa de ser também uma tomada de posição. Estranhos somos todos e todas, alguns é que não se reconhecem – parecem nos dizer.
Frankinh@ foi apresentado no 23o. Festival Recife do Teatro Nacional.
FICHA TÉCNICA
Elenco: Fabiane Severo, Liane Venturella e Thiago Ruffoni
Direção: Camila Bauer
Direção de movimento: Carlota Albuquerque
Dramaturgia: Camila Bauer e Marco Catalão
Colaboração dramatúrgica: Liane Venturella
Sonografia: Álvaro RosaCosta
Pianos e voz: Simone Rasslan
Cenografia: Elcio Rossini
Adereços: Elcio Rossini e Liane Venturella
Iluminação: Ricardo Vivian
Figurino: Daniel de Lion
Maquiagem: Marília Ethur
Colaboração artística: Douglas Jung, Jéferson Rachewsky, Luana Zinn, Pedro Bertoldi e
Renan Villas
Psicóloga convidada: Camila Noguez
Arte gráfica: Jéssica Barbosa
Direção de produção: Fabiane Severo
Realização e Produção: Projeto Gompa
Financiamento: Prêmio SESC de Artes Cênicas