“Inacabado”, o novo espetáculo do grupo Bagaceira, de Fortaleza, traz, supomos, ao menos duas entradas mais visíveis: é um réquiem, um ato de despedida em memória de um de seus fundadores, o ator Rogério Mesquita, falecido no ano passado. E pode ser lido também, propomos, como um réquiem para o teatro de grupo.
O espetáculo do coletivo que completa 25 anos pode ser visto senão como um antecipado canto fúnebre em torno da forma-grupo na cena brasileira, ao menos como um exercicio sobre as ameaças de desmanche e as tentativas de recomposição de certa experiência histórica recente, de uma ideia e de uma pratica de criação coletivizada. Ou de como se experimenta na própria cena certa percepção e sentimento a respeito do desmonte de um modelo. Um desmonte que salvo engano está em curso.
Na primeira leitura, mais apontada na encenação, trata-se de uma montagem de inspiração performativa e forte carga emocional, sobretudo para as pessoas ligadas à historia do Bagaceira e, especialmente, para quem conhece ali a participação fundamental de um artista muito querido por todos.
Esta parece ser a motivação primeira e pontual, de marcado sentido afetivo, que adiante vai abrir-se em outras direções mais ampliadas. A ausência mais que presente de Rogério é um leitmotiv íntimo, a provocar o verbo, os estados e as variações construtivas da montagem.
Um grupo de teatro vai entrar em cena para a sua estreia. No entanto, os atores e atrizes anunciam que a situação é inusual, e percebemos que em lugar do espetáculo teremos os relatos a respeito do que, nas circunstâncias dadas, poderia ser a peça. E tudo o que vem na sequência é um, por assim dizer, devaneio em ato, quando são retomadas passagens do processo, princípios de improvisação, perrengues de produção, expectativas de recepção diante do que, parece, não está pronto para o encontro com o publico.
O diretor e dramaturgo Rafael Martins fez diálogo com o diretor da Cia. Brasileira de teatro, Marcio Abreu, que tutoriou o projeto. Mesmo sem saber sobre como se desenrolou o processo de criação, conhecendo um pouco do trabalho dos dois e do grupo a gente pode arriscar que foi um encontro de vocacionados em campos estéticos irmãos.
O tema do inacabamento em arte, por antigo que seja, segue desde os principios da modernidade como uma recorrência notável. Na dramaturgia, dos esforços românticos e niilistas para anunciar a liberdade de criação ou para denunciar o trágico mal estar de um mundo incompreensível, o inacabado é um portão aberto e generoso, às vezes a permitir a entrada do sentimento da época, às vezes a servir como espaço para experimentações com a forma, por via da metalinguagem. Salvo engano o ensaio do Bagaceira circula nos dois campos, o do sentimento e o da forma experimental, tentando repercutir o mais honestamente possível um sobre o outro.
Assim, no espetáculo, nas bases de um impressionismo aqui e ali bastante melancólico, a peça “não levantada” é apresentada não como fracasso da experiência, mas como experimento vivo dentro da linguagem.
O que nos diz o Bagaceira, como quem projeta uma resposta para aquele impasse, é que é impossivel “totalizar” a obra porque os termos que nos levariam à segurança de que em um certo momento a peça se completará, estes termos não estão dados. Mas isso – nos diz a dramaturgia – não deve nos paralisar se formos capazes de propor a obra (a vida e a morte?) como processo. Então, não há peça, o que há é um tateamento sensível, proto-filosófico, em direção a ela. Uma direção que se repõe continuamente, como um labirinto, um conto de Borges. Ou quem sabe a utopia de um caminho para a criação infinita. Por fim, podemos pensar, não haverá fim, mas haverá finalidade, que é, diante do abandono, da crise, da falta – ou como queiramos chamar – a viva experimentação dos meios. O inacabado é compreendido não como derrota, mas como princípio de permanente retomada.
É uma leitura idealizada. Mas dá o que pensar. Apesar dos dilemas que essa proposta de um inacabamento produtivo coloca, é uma idealização esperançosa diante do real. Certamente confortará a alguns e soará ingênua a outros. Como em toda obra fincada no relativismo, cada um traz a sua chave. E vamos.
Um réquiem para a forma-grupo?
Este enraizamento performativo na trajetória particular da companhia, embora ocupe o plano mais visível da representação, também deixa espaço para vislumbrarmos uma segunda leva de significados através da qual se pode ler, na crise particular, um desmanche, digamos, de ordem geral. Desmanche de uma forma de organização e produção teatral muito importante nas ultimas décadas.
Um grupo teatral, nos contextos mais recentes, não é o mesmo que um agrupamento de artistas que se reúnem para criar uma obra determinada. Um grupo é, além disso, um agrupamento de artistas que mantém um núcleo duro permanente e com perspectivas de trabalho estético no longo prazo. Por isso se diz que os grupos são os melhores lugares para a pesquisa, para a experiência laboratorial do teatro. A função social do grupo é dar-se o tempo para criar o que o modelo de produção ligeira, por melhor que seja, não se dará. O grupo produz um tipo de pensamento sobre a sociabilidade que a cena comercial não tem tempo nem interesse em produzir. Daí a demanda dos artistas, nos últimos trinta anos, para que o Estado reconhecesse a utilidade social da forma-grupo, e criasse mecanismos públicos para subvencionar a sua produção. Em resumo, os grupos têm uma tarefa na sociedade, mas pela sua natureza essa tarefa não é autossustentável, pede subvenção. Este é um discurso justo, que a até poucos anos atrás ainda tinha algum lugar no esquema da economia politica. Nem que o reconhecimento fosse mais moral que efetivo.
Isto está acabando. É isso que está sendo desmontado, por muitas operações diferentes, entre elas a demonização dos artistas diante do Estado. No projeto hoje sem dúvida vencedor da direita neoliberal artistas subvencionados, sejam quais forem, são uma excrescência a ser combatida. Este é um ponto, e este sentimento, conscientemente ou não, está explicitado no “inacabado”, no transitório desenhado pelo Bagaceira.
Em outra frente, é importante notar que embora o dinheiro seja essencial, não é uma crise apenas na área do fomento à produção. É uma crise ainda mais funda e dá conta da impossibilidade cada vez maior da criação compartilhada em modos cooperativados. Resulta diretamente dos muitos chamados, achaques e estratégias de cooptação e diluição do capital. O grupo é uma forma difícil e, como aparece no trabalho da companhia cearense, torna-se cada vez mais o lugar de uma melancólica impossibilidade (embora nesse aspecto o espetáculo ainda seja, sem dúvida, esperançoso, como se disse).
A essa altura o diálogo crítico com o Bagaceira abre espaço para este dissenso: por bonito, amoroso, comovente e crente em saídas pelo afeto, o espetáculo coloca em pauta um horizonte que, paradoxalmente, inventa o seu proprio limite.
O fato é que como em geral na “democracia” de mercado, artistas e não artistas, indivíduos e grupos do andar de baixo não morrem, são assassinados. Voltemos à carta aberta de Denilson Baniwa sobre Jaider Esbell. Está tudo lá. A pesquisa artística é inviável no mundo da mercadoria. E estamos todos pressionados pela necessidade de visibilização, de repercussão imediata, de circulação veloz. É um modelo que nos impõe (não a todos, claro, impõe aos não assimiláveis, aos morríveis) uma derrota por WO, um decreto de morte por antecipação. A melancolia que o espetáculo produz de um jeito tão comovente tem, justaposta às questões de ordem intima, a intuição de uma passagem histórica.
O belo trabalho do Bagaceira talvez tenha no seu ponto mais alto este reconhecimento de que , como disse o poeta, aquilo que ainda era construção de repente parece que já é ruína. É uma intuição dura, mas poderosa. Que sirva não para nos prostrar e sim para nos mobilizar em direção à invenção. Que é mesmo, afinal, o trabalho dos artistas. Friccionemos o polegar ao dedo médio, e vamos.
(Com o pensamento em Rogério Mesquita).
“Inacabado” – Grupo Bagaceira
Festival Recife do Teatro Nacional
FICHA TÉCNICA
Dramaturgia e Direção: Rafael Martins
Elenco: Débora Ingrid, Isabella Cavalcanti, Rafael Martins, Ricardo Tabosa, Tatiana Amorim
Iluminação: Tatiana Amorim
Direçãode arte: Natália Parente
Realização: Grupo Bagaceira de teatro