Vozes de Quixeré: morte e renascimento da narrativa

Bicho alumbroso: teatro popular e invenção

Kil Abreu

Ao contrário do que o elistismo e o classismo querem fazer crer, a cultura popular nunca é desavisada. As ideias de espontaneísmo e autenticidade, vistas como valores, são discriminatórias e quase sempre perversas. Tendem a colocar as manifestações do povo em um departamento próprio, para que não perturbem as características da “verdadeira” arte, esta sim, vista como universal. O mesmo acontece quando nos esforçamos além da conta para dizer que ali há riqueza formal ou inquietação política. A contrapelo, é como se fosse necessário sublinhar o que naturalmente já está lá. Estas são algumas das operações cotidianas contra os andares de baixo, apresentadas como carinho e admiração. Podem ser notadas facilmente nas expressões de surpresa da classe média bem informada e suas renovadas “descobertas” de valor diante das expressões artísticas populares.

Bicho Alumbroso nas Entranhas do Encanto, o espetáculo da Trupe Motim de teatro, de Quixeré, Ceará, é daqueles exemplos de espetáculos enraizados na cultura popular que desarmam de pronto essas artimanhas. É trabalho que não carece de aprovação para existir. Mostra, sem pedir licença, a sofisticação estética e o imaginário político característicos das manifestações artísticas nascidas do povo, mas em formas e misturas desobedientes.

De dentro do que nos estudos literários convencionou-se chamar formas simples do relato, o solo-performance de Chico Henrique é uma vivência para o olhar, para a sensibilidade e o pensamento do espectador, disposta em várias camadas. Tal qual um dos seres que ocupam a cena, a montagem come, bebe, antropofagiza referências e as devolve generosamente, tanto para o espectador que se encanta com o mais imediato da fábula quanto para o que busca ali significados sociais e antropológicos.

 A história é basicamente uma jornada de herói – embora anti-herói –  à procura de solução para as perguntas que movimentam qualquer ser humano diante do espasmo filosófico mais essencial: quem sou eu, o que sou eu? O bicho alumbroso é uma figura ornitorríntica, é o homem narrador por trás da máscara e são também as criaturas míticas que aparecem em seu caminho, em provas e enigmas, uma a uma, como antagonistas.  Assim, na trajetória do viajante em busca de sua resposta de origem surgem, entre outros, a Matinta-perê (ou Matinta Pereira, pra quem é da Amazônia), à espera de tabaco; o Boitatá e a Cabra Cabriola – aqui incrementada com olhos cibernéticos, a representar, nas palavras do Chico, “os monstros reais do Brasil profundo”.

Trupe Motim. O ator Chico Henrique caracterizado. Foto: Sergio Lima

As máscaras, figurinos, adereços e indumentárias não se comprometem com nenhuma personagem em particular, mas remetem a muitas. A cabeça de esqueleto animal, o vestido multicolorido, o bumbo a marcar as passagens, constroem a figura de um ator brincante multifacetado. Sempre em cena aberta, com seu chapéu em cone ele lembra a presença de um Mateus, figura cômica de ritos nordestinos como o reisado e o cavalo marinho. Não por acaso o Mateus é dos personagens mais épicos da cena popular brasileira. Por ele passam tanto a consciência crítica quanto a dúvida. Trabalha quase sempre na subversão da ordem, um camarada que nem o diabo controla e que nesta versão meio existencialista encontra o corpo e a voz de Chico Henrique. O ator é o seu cavalo. Ou uma extensão, talvez, da criatura, agora amalgamada ao criador e seu espírito inquieto amplamente manifestado em cena.

            Assistindo ao espetáculo lembramos das ideias de Luis Alberto de Abreu, grande autor brasileiro, a respeito da restauração da narrativa. Quando se diz “restauração” subentende-se que a forma estava ou está soterrada. Há motivações históricas e sociológicas já bem exploradas a respeito disso. Para nós o que interessa aqui é o que o Abreu propõe e que o bicho realiza: a recuperação de elementos narrativos como caminho para fortalecer os laços entre a representação e o público. Não se trata apenas de uma estratégia de captura da plateia. Trata-se de uma esperança declarada no teatro como lugar em que o corpo social ainda possa se reconhecer como tal. Sem dúvida este é um dos pontos de chegada da pesquisa e do ótimo trabalho do artista de Quixeré. O alumbramento está lá, inventando-se em misturas, em contágios plásticos, fabulares, ao mesmo tempo reconhecíveis e inusuais. É uma bonita criação e é também um vigoroso exercício de sobrevivência.

Bicho Alumbroso nas Entranhas do Encanto foi apresentado no 19º. Festival Velha Joana, na Lagoa Municipal Vô Pedro Piana, em Primavera do Leste (MT) no dia 13/11/2025.

Ficha Técnica

Ator/diretor: Chico Henrique

Vozes adicionais: Orlângelo Leal, Maria Vitória, Jéssica Teixeira

Produção/Técnica: Janaíle Soares

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