Crítica ao espetáculo Gardênia, dirigido por Marat Descartes.*
Por Kil Abreu
Se em geral nos romances de García Marquez é o dado local e histórico que, cruzado com o mito, remete às generalizações poéticas em que se assenta o realismo sui generis que popularizou o autor, neste romance, O amor nos tempos do cólera, parece acontecer o inverso. Sem perder de vista o contexto histórico (os “tempos do cólera” em uma cidade latina no século XIX) é a mitologia pessoal que ilumina e dá perspectiva ao entorno.
A percepção fina desta inversão é o que parece mover a dramaturgia de Gardênia, assinada por Ana Roxo. A incisão feita no romance extrai dele, e de uma maneira intencionada, a linha mestra que no espetáculo aparece recortada: a relação resistente entre Florentino Ariza e Fermina Daza e a cronologia de um amor em tempo de espera. Todo o resto, do ambiente às outras personagens, é aproveitado em apoio a este eixo.
Esta estratégia é executada com muita atenção às exigências do palco, não apenas porque se trata de uma adaptação bem feita ao reconhecer as diferenças de funções entre gêneros mas, sobretudo, porque este texto novo não cai na armadilha de “dramatizar” (no sentido de dar forma dramática) o romance. Ao contrário, assume para si plenamente o narrativo intercalando os relatos, com suas idas e vindas entre o passado e o futuro, e as passagens dialogadas no presente, que firmam a atualidade das situações. É assim que a dramaturgia equilibra o tempo distendido da épica romanesca – sem o que não teríamos o efeito fundamental da história, o de uma paixão que se guarda por décadas – à concentração necessária que pede a ação dramática, traduzida em confronto íntimo, que a peça também acentua.
Diante de um mote que teria todos os ingredientes para render o texto ao novelesco o essencial do espetáculo, o que nos encanta no tratamento de um tema tão surrado como este, é a qualidade poética e de pensamento que está em García Marquez. Junto à situação – que, descontada a hipérbole dos cinquenta anos de espera poderia ser tomada como relativamente comum-, o autor ergueu uma catedral de sentidos em que cada pedra, cada palavra e cada réplica nos assaltam como se fossem uma coisa nova no mundo, mesmo que motivadas pelo ordinário da vida. Daí o estourar das pequenas epifanias que deleitam a plateia vez ou outra, quando surgem desentranhadas dos personagens. No entanto, são revelações quase sempre pontuadas com um humor inesperado que corta na raiz o risco de a peça cair no lirismo cerimonioso.
À mesma altura destes achados costurados no plano textual da dramaturgia está a encenação de Marat Descartes. O diretor e seu elenco intuíram com inteligência o caminho que fez o espetáculo encontrar uma forma através da qual o teatro se afirma potente na sua diferença. Em lugar da caracterização de ambiente e personagens, que estaria fadada à mentira diante de uma fonte literária tão poderosa, o encenador apostou na autonomia de linguagem da cena. Sem nenhum volume que não seja o do próprio espaço de representação a cenografia é teatralista e projeta literalmente sobre a narrativa um imaginário de motivos que remete sem reducionismos aos tempos e estados em que a história corre, em princípio nas cores berrantes de casarios juvenis e depois no esvaziamento paulatino de todas as linhas de fuga até que o claro-escuro e o acinzentado da velhice se instale.
No mesmo registro deliberadamente teatral, mais que intérpretes Cybele Jácome e Luis Mármora são atuadores mesmo. Também evitam a caracterização e nos oferecem no lugar desta um tipo de composição curiosa, que transita com tranquilidade entre os traços mais gerais – físicos e emocionais – dos personagens e um jogo assumido desde logo no campo construtivo da cena. Dentro e fora dos papéis eles nos mostram, com o cuidado rigoroso mas despreocupado dos atores maduros, a maneira como trabalham no momento mesmo em que trabalham, sem se descolarem do contexto de ficção e sem esforço aparente de virtuosismo. O que garante o sucesso do procedimento e a empatia da plateia é esta sintonia insuspeita, o encontro pleno entre os dois, como que compensando neste lugar “material” da montagem os desencontros que acontecem no plano da fábula.
Em um tempo, o nosso, de cálculo e de planejamento pragmático da existência, a história de García Marquez parece nos chamar a atenção para uma desrazão útil. Portanto, fora do esquadro. Um tipo de insanidade sem a qual é sempre mais difícil seguir, a ponto de acharmos verossímil que ela se estenda em uma espera que dura o quanto pode durar uma vida. É esta grandeza quase heroica, mas anônima, dos apaixonados, ração essencial do sentimento moderno, que podemos ver nua e sem alarde em Gardênia. Talvez por isso o espetáculo tanto nos comova.
*Crítica escrita em Agosto de 2010, no contexto do FENTEPP – Festival Nacional de teatro de Presidente Prudente
Gardênia
Dias 1, 8, 15, 22 e 29 de outubro. Todas as terças às 20h30. Ingressos: 50,00; 25,00 e 19,90. Teatro West Plaza/Sala Laura Cardoso – Avenida Antártica, 408, Água Branca – São Paulo – tel: (11) 4858-142
FICHA TÉCNICA
Concepção e Atuação: Cybele Jácome e Luís Mármora; Dramaturgia: Ana Roxo; Direção: Marat Descartes; Assistente de Direção: Gisele Calazans; Figurino: Simone Mina; Cenografia e Iluminação: Cristina Souto; Assistente de Cenografia: Ciro Godoy; Operadores Técnicos: Rodrigo Palmieri e Leandro Ivo; Projeto Gráfico: Sato do Brasil – casadalapa; Produção e Realização: Marmorhaus Produções Culturais.