Crítica ao espetáculo Tu Amarás, do grupo chileno Bonobo, que integra a programação da 7ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.
Por Rodrigo Nascimento (texto inicialmente publicado no site da MITsp)
“Amar ao próximo como a ti mesmo”. O mandamento bíblico poderia funcionar como um princípio ético em torno do qual se organiza a existência. Mas para as personagens de Tu Amarás, do grupo chileno Bonobo, ele age como uma fantasmagoria; e o “próximo”, como uma pessoa que assombra cada palavra escolhida. Por isso mesmo, a peça dirigida por Andreina Olivaria e Pablo Manzi, que assina a dramaturgia, poderia também se chamar “Incômodo”.
Cinco médicos brancos discutem uma apresentação que farão na conferência sobre preconceito na medicina. Seu foco são os Amenitas, população extraterrestre que passou a habitar a Terra de modo marginalizado, e com a qual aqueles profissionais tiveram contato cotidiano. Uns acreditam conhecê-los bem, outros creem ter superado o racismo contra eles, mas a proposta bem-intencionada paulatinamente revela uma chaga de fundo: fala-se sobre um “outro” que não está em cena, que não revelará suas formas de conceber a existência, seus traumas ou expectativas. Do Amenita só chegam representações. Talvez a mais perversa delas, feita em slides cheios de intenção politicamente correta, não há sequer uma foto do Amenita, apenas uma imagem daquilo com que os médicos acreditam que ele se parece: um cachorro.
A cenografia se reduz à assepsia de um congresso internacional. O foco não está nos objetos, nem no jogo físico, pois interessam as palavras, as hesitações e os silêncios de quem fala. A trama evolui em uma conversa na qual a fala sobre o “próximo” revela mais sobre quem diz do que sobre o que é dito. Assim, não querem se comprometer demais, mas também não dão ao outro o direito de ser ouvido. Creem ser aqueles que em anos de ciência se capacitaram a ter uma imagem “exata” e superior da realidade. No entanto, os Amenitas existem, povoam os consultórios e periferias – ou seja, o confronto dramático se dá nas sombras, pressionando todos contra a parede.
Nesse jogo de “esconde-mostra”, típico da comédia, o empreendimento aparentemente ético se mostra ridículo. Não só porque dentro do grupo há um médico envolvido no assassinato de um Amenita – o que aparentemente livraria a todos de uma culpa –, mas porque cada um ali – mesmo a futura plateia da conferência – tem uma imagem animalizada, inferior e racista do outro. Todos parecem não querer se livrar da mazela que se tornou a vida dos Amenitas, mas apenas se livrar do incômodo de ter que lidar com eles. Querem higienizar sua própria imagem. A forma da peça incorpora, assim, o incômodo das palavras e a desfaçatez da situação: os corpos das personagens estão rijos, as conversas por um fio e a comicidade tensa – pois o riso é revelador de uma deformação que está também nas percepções de mundo da plateia de uma boa mostra internacional ou de uma crítica teatral bem-intencionada.
As personagens de Tu Amarás (como nós) são colocadas em confronto com seus próprios valores e preconceitos. Os Amenitas se convertem em alegoria de povos que no Chile, no Brasil e em todo o mundo são reduzidos a caricaturas, a seres incapazes assediados pela boa ação dos bem-intencionados, sejam eles os colonizadores de outrora, sejam eles catequizadores, médicos, militantes ou plateia de agora. Amenitas passam a ser um problema quando deixam de ser dóceis, assim como o indígena e o negro passam a ser um problema quando fogem da expectativa e da identidade fixa que deles foi criada.
Terminamos sem saber como foi o discurso da conferência, mas isso parece não importar: uma médica revela a ferida que lhe foi impingida por uma senhora Amenita. O corte, como diria o índio da cena paralela e introdutória, era uma forma de estar no outro. Corta-se o outro como gostaríamos de ser cortados. Agem assim os médicos? Agimos assim nós? Tu Amarás parece insistir, como os outros espetáculos do grupo Bonobo, que mesmo na democracia e por trás de belas palavras há violência. Parecem insistir que não pode haver amor se não houver disposição radical de viver a diversidade – e a ferida – do outro.