Boal, 90: Jogos para atores e não atores

Augusto Boal teria feito 90 anos no último 16 de Março. A edição atual de Jogos para atores e não atores – uma de suas obras mais traduzidas – é súmula de métodos e pensamento do notável artista brasileiro.

Workshop de Boal com técnicas do Teatro do Oprimido em Paris (1975), durante exílio do dramaturgo

Por Kil Abreu

Filho de um padeiro português que veio para o Rio de Janeiro por se recusar a servir como soldado em uma guerra com a qual não concordava e de uma jovem que abandonara o primeiro noivo praticamente no altar para casar-se, por escolha e gosto, com um “aventureiro”, Augusto Boal aprendeu desde logo que o mundo pode e deve ser mudado, e que para isso é preciso coragem e decisão. Toda a sua invenção nas políticas do teatro baseia-se nesta fé no movimento dos homens e mulheres sobre o curso dos acontecimentos. Não é apenas um lance retórico, as motivações devem ser encontradas na vida ordinária.

Aos doze anos de seu falecimento (2009), vale trazer de volta aos olhos este pequeno tesouro. Jogos para atores e não atores foi relançado pelas Edições Sesc em parceria com a Cosac Naify, em 2016. O original é de 1973 e foi publicado no exílio argentino (Ejercícios e juegos para el ator y el no actor com ganas de decir algo a través del teatro). A edição brasileira atual amplia em muito as anteriores. Lança perspectivas desde que os apontamentos iniciais sobre o que viria a ser o Teatro do Oprimido se deram, nos anos 70. Dali em diante Boal criou um formidável repertório de técnicas e pensamento, testado dia após dia na própria prática cênica, boa parte dela experimentada junto ao povo, inicialmente na América do Sul e na Europa. A edição de agora tem base na última versão, revista por Boal em 1998, e nos sucessivos acréscimos feitos a edições estrangeiras até meados dos anos 2000, consolidados na versão alemã de 2013. A este material já substantivo assimila-se ainda, entre outros apêndices, duas entrevistas, uma delas inédita, e o prefácio do autor para a edição inglesa de 1995. Junto a O teatro do oprimido e outras poéticas políticas, é o livro mais traduzido e reeditado de Augusto Boal, mundo afora.

Jogos para atores e não atores é dividido em quatro capítulos e acrescido de quatro apêndices. No primeiro capítulo relata-se as experiências iniciais, na Europa setentista, das diversas práticas do Teatro do Oprimido (Teatro-Imagem, Teatro Invisível, Teatro-Fórum). Nos dois capítulos seguintes é detalhado com mais precisão o repertório técnico propriamente dito. Primeiro, os exercícios de base stanislavskiana que pautaram a fase nacionalista do Teatro de Arena, em que Boal seria um dos colaboradores fundamentais. Depois o arsenal de jogos mais notadamente identificados  com o Teatro do Oprimido e, por fim,  o capítulo  que  formula uma avaliação “provisória” do Teatro-Fórum, em que o autor opera a dialética aplicável  a todo o sistema – aquela que deve confrontar os elementos estruturais do Teatro do Oprimido com a necessidade de modificação das práticas conforme o contexto social: “O desenvolvimento em múltiplas direções do Teatro-Fórum em tantos países do mundo determina, inevitavelmente, uma revisão de todos os conceitos, de todas as formas, estruturas, técnicas, métodos e processos. Tudo é reposto em questão. Só não se pode repor em questão os mesmos princípios do Teatro do Oprimido, que é um método complexo e coerente. Esses princípios são: 1) a transformação do espectador em protagonista da ação teatral e, através dessa transformação, 2) a tentativa de modificar a sociedade, e não apenas de interpretá-la”. (p.293)

Esta disposição para ver nos procedimentos técnicos não um corpo imexível, um fim em si mesmo, mas um conjunto de saberes cujo estatuto estético, como também ético, é a própria necessidade de ajustamento útil ao meio, é o que move toda a trajetória de Boal e a sua arte de intervenção. É preciso proteger os princípios gerais – a possibilidade de fazer do espectador do teatro burguês o “espect-ator”, aquele que não só olha como também age; e a ação como coisa modificadora. Mas não para preservar uma ‘descoberta’ formal. É preciso proteger os princípios porque eles auxiliam o jogo a partir de modos livres de subjetivação, de construções narrativas em que a própria ideia de estética teatral tem que ser mobilizada a favor de um ato do ser humano no qual a beleza, essencial ao estético, não se desvincula dos insights político-filosóficos nascidos da compreensão do atuante sobre o seu lugar e sua possibilidade de intervir no curso do mundo.

Jogos para atores e não atores: edição ampliada

No livro há passagens recorrentes e em diferentes épocas nas quais Boal alerta para o fato de que a percepção destes processos deve evitar o ensimesmamento. A individuação não deve ser tomada como ponto de chegada. Como aqui, passagem em que comenta dialeticamente as ‘técnicas gerais de ensaio’:

“…é necessário distinguir sempre a vontade (que pode ser o resultado de uma psicologia caprichosa) da necessidade social. A vontade é a necessidade. Além disso, também são interessantes, do ponto de vista da improvisação, as vontades contra as necessidades: Eu quero, mas não devo”. (p. 265)

Em contrapartida, podemos intuir da leitura, compreender estas ações estritamente como instrumentos da voz coletiva também é em alguma medida desconhecer os rumos que elas foram tomando no decorrer do tempo e no reconhecimento do processo histórico, com a emergência de questões políticas cada vez mais pontuais. Se o Teatro do Oprimido nasce, de fato, como instrumento de luta revolucionária e no contexto de uma sociedade altamente polarizada, ele se amplia (de maneira não pacífica, certamente) para tentar compreender, em termos atuais, a complexa relação entre sujeito e sociedade com atenção ainda maior ao sujeito . A este impasse, localizado nas fronteiras entre a luta social e as demandas mais específicas da subjetividade, Boal responde abrindo caminho para o alargamento dos campos de intervenção do Teatro do Oprimido. O que de fato ocorreu através de métodos como o Arco-Íris do desejo, avizinhamento entre teatro e terapia: “o Teatro do Oprimido foi criado para servir as pessoas – não são as pessoas que servem o Teatro do Oprimido”. (p. 388)

Talvez seja nesta mesma direção que Sergio de Carvalho aponta quando no posfácio indica para o perigo de o ‘arsenal’ dar no lugar contrário daquele para o qual foi pensado, sendo gerido pela superfície, sem a complexidade dialética necessária para fazer da apropriação dos meios do teatro proposta por Boal um lance de efetivo efeito crítico; ou sendo tomado como mero lance retórico alinhado às formas mercantis do esteticismo:

“…mesmo em ambientes de esquerda é preciso um esforço narrativo enorme para que as pessoas considerem possível conectar o caso doméstico a uma pressão social mais geral, sem saltos fáceis do particular ao geral. Sem maior perspectiva política e dialética na escolha dos temas e formas, a tomada dos meios de produção teatral pode ser imaginária e se converter num elogio difuso, ainda que prazeroso, às virtudes libertárias da ação estética”. (p.407)

De todo modo é uma obra no movimento vivo do mundo. E assim é que além da utilidade documental desta edição junta-se ainda uma perspectiva alentadora se pensarmos o livro à luz da cena contemporânea, inclusive a experimental. Não há dúvida de que o tempo a justificou, a respaldou, foi em direção a ela. Resguardados, naturalmente, os pontos de chegadas e os propósitos, não será demais dizer que Boal, no seu desejo em amalgamar fato estético e processo social, antecipa em boa medida o que o teatro busca hoje com recorrência: o deslocamento das técnicas de atuação e encenação na direção das ruas, dos fatos vivos do dia a dia, nas chamadas “performações” do presente ou nos “teatros do real”. Quando conseguem evitar o narcisismo estes nada mais são que a aproximação entre arte e vida que o notável homem de teatro experimentou o tempo todo. Não como mero artefato, novidade de temporada, e sim como o projeto persistente para um teatro justo, estética e politicamente. Como é comum na biografia dos grandes artistas, trata-se do projeto de uma vida inteira.   

Jogos para atores e não atores

Augusto Boal

Edições Sesc São Paulo e Editora Cosac Naify

2015, 416 p.

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