A árvore: a vida só é possível reinventada

Crítica ao espetáculo A Árvore, com direção de Ester Laccava e João Wainer.

Por Rodrigo Nascimento e Kil Abreu

Alessandra Negrini em cena de A Árvore.

Nos últimos meses muitas coisas nos foram arrancadas e outras foram impostas com violência inédita. Difunde-se a ideia de que que o importante agora é sobreviver, já que as esperanças de futuro foram cerceadas e a morte se tornou um dado incontornável do presente. Talvez por isso “A árvore”, solo protagonizado por Alessandra Negrini, dirigido por Ester Laccava e João Wainer, e escrito por Silvia Gomez, ganhe uma atualidade e uma importância ímpares: é uma recusa às limitações que o presente insiste em naturalizar.

Em “A árvore” o conjunto recusa qualquer enquadramento definitivo ou ultimato de época. Isso se traduz na forma oblíqua com que Silvia Gomez apresenta a saga de A., mulher que relata a um interlocutor desconhecido como aos poucos se transforma em um vegetal. Os movimentos emergem acompanhados menos de uma consciência racional e linear e mais de um fluxo poético: a cronologia se altera, os pensamentos se amontoam sobre sensações, as imagens se impõem combinadas a ideias fragmentárias. Uma hora sabemos que ela vai cuidar das plantas da vizinha, na outra sabemos que um radical processo de “tornar-se planta” entrou em marcha. O evento fantástico guarda algo da transformação inusitada de Gregor Samsa, em “A Metamorfose”, que depois de uma noite de sonhos intranquilos subitamente se vê transformado em um inseto. Mas no monólogo de Gomez não há o assombro desesperado e ultra racional da personagem kafkiana. A. parece pouco interessada nas consequências lógicas de sua transformação, pois quanto mais se percebe planta, mais é tomada de uma empolgação contra as velhas categorias (funcionais, utilitárias, mercadológicas e individualistas) que dominam nossa existência.

 Mas que forma seria essa? Estaríamos mesmo diante de um relato? Não há nesse testemunho também um testamento, como se A. deixasse para trás o legado de nossa miséria e sugerisse a entrada em um mundo novo? Ou seria talvez uma vídeo-postagem irônica para o interlocutor que acompanharia o seu último post em rede social, revelando as futilidades deste nosso mundo animalizado? Ou ainda um diário alucinado, que tem como interlocutora ela própria, tentando entender os descaminhos desta estranha transformação, sugerindo a nós a necessidade de um mergulho íntimo radical como primeiro passo para qualquer revolução? A classificação importa pouco, já que a forma é fugidia da mesma maneira que a narrativa dos acontecimentos o é, pois segue aquela causalidade mágica de que falava Jorge Luis Borges, a propósito de suas narrativas fantásticas. Afinal, quando a racionalidade de Estado parece tomada do mais alto poder de destruição e morte, como no Brasil de hoje, talvez apenas a forma fantástica seja capaz de avançar sobre o nervo do nosso tempo e encontrar sendas para o futuro. De todo modo é límpido que, como uma espécie de compensação ao pensamento em deriva, a imaginação criativa que se faz ver – aparentemente tão íntima – não é nem mero exercício de estilo, muito menos celebração do ensimesmamento. Lembrando a poeta russa Anna Akhmatova e um episódio do stalinismo, a personagem diz: “Sim, sim, eu escrevo para que você saiba que isso de fato aconteceu”. Basta olharmos em torno para concordar. Em um momento de terror como este, quando esta criação vem a público, a imaginação poética, a escritura, precisa ser também política. É a sua ética esperada.

Alessandra Negrini em cena de A Árvore.

O íntimo, o mundo

No espetáculo, o signo da recusa também se impõe ao negar que a casa seja palco de uma morte solitária. Hoje, quantos de nós não nos angustiamos com o fato de que o confinamento pandêmico flerta com uma morte gradual e silenciosa? É como se o lar de cada um e cada uma se tornasse palco de um incomunicável sofrimento, rompendo nosso vínculo com as saídas coletivas. No entanto, em “A árvore”, a intimidade de uma mulher solitária se transforma em fato público.

O monólogo que, aparentemente, supõe a impossibilidade do diálogo, sugere aqui a explosão do íntimo que aspira ao outro. A personagem verbaliza sua viagem no interior do lar, ainda que sem entendê-la de todo, porque seu apartamento não é só refúgio, não é só um baú de segredos pequeno-burgueses. Ele é documento da História e de suas transformações, como a própria protagonista ilumina: “as casas não são apenas almofadas e fogões, mas sim a história escondida em almofadas e fogões e tubulações – a história das revoluções, da fome, da guerra, dos encontros, da justiça, da injustiça, da tirania, das pestes”.

Ela dá vazão àquilo que Jean-Pierre Sarrazac poria nos termos de uma “conflagração entre (…) a casa e o universo, o eu e o mundo”, de modo que o relato do que parece incomunicável, o relato de algo que os vizinhos mal podem perceber, vira chamado coletivo para a urgência de um novo modelo civilizatório. É como se o movimento quase ridículo de uma “mimosa pudica”, plantinha que agarrou o cabelo de A. enquanto ela limpava a estante, e que foi gatilho para uma transformação radical na vida da personagem, fosse o mesmo movimento que serviu de estalo para que o apartamento de classe média se transformasse em jardim, em floresta, em novo planeta. É uma planta que delicadamente agarra o cabelo, mas é também um ser que grita, uma crítica e um chamado.

Alessandra Negrini consegue de modo muito perspicaz lidar com essa difícil dialética, mediando a descoberta de um “devir planta” com a fina ironia de quem deixa para trás um modo de vida destrutivo e caduco. Vai, portanto, do lírico ao cômico com muita naturalidade – a mesma naturalidade que captura a densa filosofia da dramaturgia de Silvia Gomez para convertê-la em uma atuação limpa, que nos cola ao sensualismo dos animais e vegetais. Sobre esse tema, a sensualidade e a beleza, podemos dizer que é uma atuação que resgata, para nós, uma variação importante do sensual. Não é algo fortuito se pensarmos em uma atriz bonita como Negrini. Dizia a pintora e pedagoga Fayga Ostrower (parafraseamos) que, do ponto de vista da arte, a beleza não é o “bonitinho”. Trata-se de uma justeza interior à forma, aos arranjos, que nos parece bela. Este trânsito não em linha reta, mas interessado nas curvas, idas e voltas do texto, cheio de sutilezas, de um a outro estado, em busca do ajuste no imaginário da cena é o que, supomos, movimenta a atriz. Isso nos leva com ela enquanto a vemos trabalhar bonitamente.   

Alessandra Negrini em cena de A Árvore.

A crise, a mudança

A direção de Ester Laccava e João Wainer também recusa a ideia de que o teatro teria morrido nestes tempos de pandemia. Na gravação em teatro-cinema ou cinema-teatro (não importa o status, importa o que a experiência é, efetivamente), por mais contraditório que pareça, é a força da cena que se impõe; não só porque o apartamento onde vive A. foi delicadamente forjado em um palco, ou mesmo porque o enquadramento sugira mais a amplitude da cena e menos os closes do cinema, mas porque o teatro é presentificado através de ausência. À determinada altura da saga de A., a atriz deixa sua personagem e, sentada em um palco nu, diante de um espelho, analisa o que se passa. A plateia está vazia. E nós, espectadores confinados em uma casa ou apartamento, experimentamos a dimensão fantasmática do teatro que insiste em dizer que ainda está lá.

Na esteira dessas relações entre texto e cena-tela-vídeo, vale dizer que a obra de Silvia Gomez é bela e difícil. É bela ao conjugar sua vocação para o lirismo em um plano de pensamento que nos interessa e mobiliza; mas é difícil do ponto de vista do desafio, da tarefa artística colocada aos outros criadores, nas circunstâncias dadas. Por isso o trabalho com interesse nas minúcias, em que se empenharam o diretor e a diretora, é digno de nota. Cria, em uma frente, os vínculos para que as situações narradas, fugidias e em fragmentos, tenham chão. A paisagem visual nos chega, assim, cheia de detalhes significativos –  na alternância entre os planos, nas eleições que a câmera faz dentro da cenografia, por exemplo; e em outra frente alicerça possibilidades, geografias, espaços, intenções para a atuação de Alessandra Negrini. A escolha por certa forma naturalista na interpretação (sem, no entanto, sublinhar a própria forma) parece acertada. Ela gera campos de empatia em um veículo tão mediado quanto o vídeo, a ponto de podemos dizer que – sim – o teatro está lá porque nada disso seria possível sem os instrumentos centrais, os discursos e manhas do mais antigo teatro. O trabalho de Ester Laccava e João Wainer foi descobrir, então, veredas pelo meio e para o meio. Não há novidade na tarefa, mas há nas circunstâncias. A sociologia em que estas operações se inserem neste momento da vida do país pedem mais que “soluções técnicas”, transposição de linguagens e etc; pede sensibilidade às questões de fundo, que nos dizem respeito a todos e todas e que salvo engano também guiaram as buscas da direção. O xadrez que a encenação joga envolvendo meios, invenção e finalidades é, pode-se dizer, a cifra de arte do projeto. E ela é muito significativa.

A montagem, como se vê, não se reduz a esquemas, nem a ultimatos. Não é um relato de morte, ainda que a personagem, de algum modo, precise renascer daquilo que estava morto. É um chamado para que se viva de modo diferente, mesmo que isso implique negar categorias que basearam até hoje nosso entendimento do humano. E tal como o pensamento ameríndio, que coloca a condição humana mais como perspectiva – ou posição – do que como essência superior à dos demais animais, plantas e objetos, a protagonista de “A árvore” perde sua condição de hommo sapiens para se reposicionar no mundo. Não há redução ou limitação nisso, pelo contrário: há enraizamento, expansão, pulsão, criação. No limiar da natureza e da cultura, ela percebe que não só seu sangue se torna seiva, mas também números, fronteiras, objetos, mercadorias e a própria noção de indivíduo deixam de fazer sentido. Aliás, o sentido não importa mais. Assim, “A árvore” abre uma pequena janela nesse nosso cômodo escuro. Nos lembra que é possível respirar e que as plantas ainda podem tomar conta das ruínas.

SERVIÇO

A Árvore

De 26 de fevereiro a 18 de abril. Sextas e sábados às 20h e domingos às 19h.

Ingressos – R$30,00.  Duração – 70 min. Classificação etária – 14 anos. Em plataforma digital no Teatro FAAP (www.teatrofaap.com.br) na plataforma da Tuddus (www.tudus.com.br).

FICHA TÉCNICA

Idealização e interpretação – Alessandra Negrini.

Texto de Sílvia Gomez. Criação e roteirização – Ester Laccava. 

Direção – Ester Laccava e João Wainer.

Direção de Produção – Gabriel Fontes Paiva.

Realização: Fontes Realizações Artísticas.

Produtores Associados: Alessandra Negrini e Gabriel Fontes Paiva.

Assessoria de Imprensa – M. Fernanda Teixeira (Arteplural).

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