Crítica ao espetáculo Evocação de Patrícia Galvão, Pagu, da Companhia da Memória, com direção de Marina Tenório.
Por Rodrigo Alves do Nascimento
Como evocar Patrícia Galvão (1910-1962) hoje? As imagens disponíveis são muitas: musa do modernismo, símbolo de liberação feminina, militante corajosa e abnegada, artista experimental fora dos enquadramentos, ícone rebelde pop… Mas todas elas em geral passam ao largo de uma dimensão menos heroica, que a própria Pagu põe a nu em sua autobiografia “precoce”, feita na forma de cartas destinadas a Geraldo Ferraz, seu último companheiro, em 1940.
Trechos dessas cartas ganharam o palco, em Evocações de Patrícia Galvão, Pagu, montagem dirigida por Marina Tenório e com realização da Companhia da Memória. Às vésperas do centenário da Semana de Arte Moderna de 22, o grupo contribui para um movimento de releitura do modernismo a partir de suas margens, trazendo para o primeiro plano perspectivas distantes dos salões literários da elite cafeeira paulista, das reuniões predominantemente brancas e masculinas ou das experimentações reduzidas a alguns temas e nomes de relevo.
Aqui Pagu passa a própria vida a limpo, em movimento semelhante ao do romance de aprendizagem ou de formação (Bildungsroman), só que em chave negativa: o desenho de si valoriza não a coragem destrutiva ou as descobertas inovadoras, mas os custos de uma imagem que ela própria sabia ter contribuído de algum modo para construir. Tudo isso vem sensivelmente sugerido nas projeções de croquis desenhados por Pagu. Eles tomam o palco na mesma proporção que as palavras das atrizes revelam que, por trás da femme fatale, leitora potente de poemas de vanguarda no Teatro Municipal (imagem em larga medida propagada por Oswald e Bopp), ou mesmo por trás da militante disposta a todo tipo de sacrifício para o Partido Comunista, há uma mulher constantemente deslocada, tensa diante de decisões dolorosas e, por fim, mergulhada em desencanto político.
O movimento desenhado é o de uma Pagu desiludida no presente que organiza memórias e as presentifica com força deslumbrante. Na leitura dramática de trechos das cartas, a voz das atrizes Ondina Clais, Mafalda Pequenino e Marina Tenório dão modulação sutil a essa entrega íntima, conseguindo calibrar tenazmente a revelação da dor em baixo tom com o vigor do grito de quem ganhava a praça pública. A direção de Marina Tenório se impõe pela força do gesto simples reduzido ao essencial, que não falseia espetacularizações. O palco está limpo, a passagem de luz é suave, os gestos são mínimos – tudo em sintonia com uma vertente modernista que se emancipa de qualquer formalismo classicizante, conquistando a máxima expressão na máxima economia de recursos.
Uma voz dimensionada por outras vozes é outro recurso modernista que ganha forma na montagem. Mais do que o caráter individualizante do monólogo – que muitas vezes acentua a ideia de um sujeito uno consciente de si em todos os aspectos – prevalece a Pagu multifacetada, que não se reduz a enquadramentos fáceis. As atrizes, cada uma a seu tempo, dão corpo a um mesmo depoimento, mas criando um poderoso efeito prismático. Apresentam uma Pagu em seu desejo de liberação da redutora vida familiar, em sua luta para não reproduzir padrões monogâmicos e pequeno-burgueses no casamento com Oswald e na criação do filho Rudá, em sua luta para não ser reduzida ao sexo, em sua irritação com as pompas literárias dos modernistas de São Paulo e de Buenos Aires, em seu encantamento com a luta comunista, em seu sacrifício para provar sua fidelidade à causa e, por fim, sua desilusão na viagem à União Soviética, onde vê uma criança com os dedos congelados pedindo esmola.
Por trás de tudo, o fio invisível da mulher que quer oferecer-se em sacrifício de modo profundo e que, mesmo desiludida, não aceita os aprisionamentos variados da vida burguesa. Este mesmo fio é habilmente costurado na forma da encenação, composta de inserções de leituras de poemas de Pagu feitas por Walderez de Barros. A leitura em close, a um só tempo limpa e vigorosa, reforça o lirismo melancólico e a imagem de uma escritora que não aceitava nada menos que a entrega total.
Trata-se de um espetáculo íntimo em seu sentido forte, pois não se reduz à revelação de memórias privadas, como cabe à burguesia que vez ou outra publiciza com pudor seus pecadilhos. São intimidades que se forjam na luta com as forças sociais e com as determinações de época. Tudo filtrado por aquela melancolia de esquerda, a qual se referia Benjamin – um sentimento que é produto dos fracassos de uma luta justa, um cansaço que não se reduz ao tempo histórico do Capital. Mas isso não significa inércia. Afinal, são memórias de uma mulher no enfrentamento para se constituir e ser reconhecida como sujeito; e as atrizes – quando nos olham ao final do espetáculo – parecem nos dizer que a dor dessa luta continua.
Serviço:
Teatro na Mário: Evocação de Patrícia Galvão, Pagu
Data: 15, 16 e 17 de outubro de 2021
Horário: 19h
Local: Auditório Rubens Borba de Moraes – Biblioteca Mário de Andrade
Endereço: R. da Consolação, 94 – República, São Paulo – SP, 01302-000
Ingressos GRATUITOS disponíveis através do Link:
https://www.sympla.com.br/teatro-na-mario-evocacao-de-patricia-galvao-pagu__1370012