‘MACÁRIO do brazil’ dá razões a Álvares de Azevedo

Macário do Brazil: Álvares de Azevedo revisitado.
Foto: Mariana Chama

Por Kil Abreu

Álvares de Azevedo (1831/1852) é uma referência do romantismo brasileiro não só pela importância de sua breve obra, mas também por cumprir a sina daqueles mortos pelo “mal do século”, na segunda metade do século XIX. Derrubado pelo cavalo e pela tuberculose aos vinte anos, nem seu túmulo à beira do mar permaneceu, foi levado pela ressaca. É um escritor que mal teve tempo para desabrochar e, no entanto, foi capaz de marcar posição na poesia tanto quanto no teatro, vivendo ele mesmo a má sorte reclamada pelo segundo movimento romântico.

Uma de suas peças, muito comentada mas pouco montada, é esta que o grupo dirigido por Carlos Canhameiro levanta agora em MACÁRIO do brazil. “Macário” é uma dramaturgia inacabada e segue desafiando artistas, mesmo no contexto de uma cena que já admitiu há muito a implosão do drama. Quanto ao tom, inspira-se no sentimentalismo melancólico de Byron, e quanto à forma, afirma o gosto pela desobediência literária, regida longinquamente pelas liberdades já tomadas por Shakespeare, modelo de séculos antes (pensemos o quanto Macário caberia no figurino de Hamlet). Na peça, a tarefa de tensionar os gêneros sem mediações entre o cômico e o dramático ou, como escreveu Victor Hugo no seu famoso manifesto, entre “o grotesco e o sublime”, ganha a dimensão de um experimento muito avançado para a época e ainda hoje. Mal comparando, não seria exagero dizer que Azevedo foi uma espécie de ‘pós-dramaturgo’ muito antes do que há pouco se convencionou chamar de teatro “pós-dramático”, com seus materiais impuros e o pouco apreço pelas regras de composição. Daí, talvez, o interesse de um encenador, de um grupo de teatro no Brasil de agora, por sua fábula noturna.

 A ação, até onde existe e pode ser descrita, conta sobre a jornada íntima de um jovem estudante, um bastardo, que segue a caminho de uma cidade grande, mas imprecisa. Os historiadores associam esse percurso à biografia de Azevedo mesmo, em direção a São Paulo, onde o autor pretendia cursar a Faculdade de Direito. Na peça, a discussão sobre os fundamentos do amor e da maldade ganham representação em Satã, personificado. Será ele um dos interlocutores de Macário, contraposto ao amigo Penseroso (na montagem, Penserosa), um anjo ingênuo que não por acaso tem no final o pior dos destinos.

Os locais em que as coisas acontecem são às vezes bem definidos, como uma estalagem, um cemitério, um quarto. Outros nem tanto, como quando se lê uma rubrica indicando apenas que a cena acontece “ao luar”. O jogo entre o que é imediatamente legível e o que aparece impreciso estende-se nas várias passagens em que sonho, pesadelo e realidade se entrecruzam.  Nas discussões de fundo estão os duplos moventes característicos do romantismo :  vício, virtude, amor, morte, sabedoria, ignorância, e a idealização de uma vida livre diante de um mundo organizado em convenções. São temas apresentados, como disse o crítico Antonio Cândido, “em uma mistura de discussão moral com espírito jocoso”.

Aventura estética

Uma questão sempre levantada pela crítica teatral é se o texto, incompleto, teria a mesma radicalidade se fosse terminado. O caráter de experimento sobreviveria? Não saberemos. De todo modo, uma obra de arte também se faz de acasos. É o que é, e como é parece servir perfeitamente aos desejos do grupo liderado por Canhameiro, por um escrito fora do esquadro em forma e significados.

O melhor do espetáculo é o vigor da aventura artística e a reunião de atores e atrizes veteranas com as mais jovens (Nilcéia Vicente, José Roberto Jardim, Alitta e Danielli Mendes), sem distinção de protagonismo. Um coro grande (o coro dos vinte anos) dá viço à retórica da peça, muitas vezes fugidia e de difícil formalização. A presença dos garotos e garotas costurando as cenas e levantando imagens que nos dão um horizonte de leituras possíveis é muito significativa, sobretudo se pensarmos que aquilo foi escrito por um camarada que mal entrara no mundo “adulto”.

O ‘Coro dos vinte anos’. Foto: Mariana Chama

A presença ao vivo do Quarteto à Deriva – já velhos companheiros do encenador e sua Companhia – dá uma qualidade indispensável ao teatro que se extrai dali. As canções são defendidas com muita empatia por Paula Mirhan e Yantó. Deles é pedido não apenas que cantem, mas que interpretem as músicas (“românticas”, um trocadilho feito pela encenação, em ato). Ajudam a nos fazer pendular entre o lamento por amores impossíveis e o quase humor que sai de lá, por contraste.

Assim como esse jogo livre com a palavra “romantismo”, há outra tradução interessante, que atualiza a ideia de “gêneros” literários, fazendo-a alcançar um sentido provavelmente não imaginado por Azevedo, àquela altura: o gênero como identidade, nos termos em que sabemos hoje. No espetáculo o trânsito entre personagens masculinos e femininos e a troca deliberada de papéis colocam o assunto em outro lugar, num lance fortemente teatral.

Pode-se dizer, por outro lado, que a vitalidade da aventura estética cobra o seu preço. Ao espectador cabe avaliar se embarca inteiramente no prazer na viagem espetacular ou se pede o valor do ingresso de volta. As duas atitudes nos parecem legítimas.

Como sabemos, a essa altura o teatro não se mantém em enquadramentos, então em geral já não faz sentido pedir respeito ao texto. Ainda mais diante de uma peça já ela mesma fora da ordem. Críticos modernos como Sábato Magaldi, mesmo já a par dos princípios de autonomia da encenação, disseram que a obra não passa de uma “tentativa”. Antonio Candido, sem deixar de reconhecer o gênio e a novidade, chamou-a de “irrepresentável”. Mas hoje, depois que o teatro já viveu tudo, qual seria a utilidade de um pedido textocêntrico?  

Ainda assim, talvez haja espaço para perguntar se mesmo diante de todas estas permissões a mão do encenador não pesou demais. Podemos pensar, por exemplo, se o borrado da ação no primeiro episódio, com as falas das personagens ditas em andamento propositalmente mais rápido, não redunda em esteticismo, em um tipo de formalismo que, buscando a abertura poética, pode acabar em fechamento. Se sim, estaríamos mais a favor do efeito do que do sentido? É uma questão não só para este trabalho.

No espetáculo sobressai a maneira disciplinada como os quadros são organizados, sobretudo nas marcações da cena no espaço, em contraponto aos arroubos fugidios da dramaturgia. É uma forma de compensar a retórica metaliterária oferecida por Álvares de Azevedo. E, curiosamente, também é inspiração para levantar a experiência de metateatro que a montagem projeta. Trata-se de uma percepção fina do material, pela direção.

É preciso dizer que há ao menos uma imagem mais duradoura que as demais, e ela permanece lateralmente, como um leitmotiv cênico, a informar a representação: um artesão prepara o simulacro de bonecos-cadáveres. Jogados em cena, pouco a pouco vão ocupar o espaço. Impossível não fazer relações com a conjuntura social presente. Uma época de funda injustiça, em que jogos envolvendo poder e crença resultam nas manifestações do mal de que a peça fala. Talvez esta seja a imagem mais imediatamente política do espetáculo. É importante porque oferece um eixo de pensamento que não o deixa cair na experimentação narcísica, que só olha para si mesma. Quanto a isso, vale lembrar que a inspiração romântica pode ser explorada, como de fato foi, em projeções do idealismo revolucionário, mas também em mero lamento do decadentismo burguês.     

Em um momento tomado pelo teatro de viés sociológico, é muito bom que o espetáculo exista. Cumpre um exemplo daquilo que o teatro também pode ser vivamente, na sua aventura com a linguagem. Daí a pergunta: seria a iconoclastia o laço mais efetivo entre essas juventudes de épocas diferentes? Se sim, talvez possamos dizer que a busca dos românticos de hoje é pelo sentido da vida diante das inquietações existenciais nascidas de um mundo no qual a melancolia continua sendo um sentimento presente. Só que agora com motivos multiplicados, ou quem sabe mais visíveis que antes, e postos diante dos nossos olhos de uma maneira sem dúvida mais veloz.

  • CENA ABERTA faz parte do projeto Arquipélago, com apoio da produtora Corpo Rastreado.

MACÁRIO do brazil

Data: 2 de agosto a 1º de setembro, de quinta a sábado, às 20h, e, aos domingos, às 18h
Local:
TUSP Maria Antonia – Rua Maria Antonia,294 – Vila Buarque
Ingressos:
Gratuitos
Duração: 95 minutos
Classificação: 14 anos

Sessões com palestras entre as partes do espetáculo (30 minutos):

09/08 Palestra n.1 – MACÁRIO OU DO DRAMA ROMÂNTICO BRASILEIRO, com Andréa Sirihal Werkema

16/08 Palestra n.2 – TEATRO E TRANSFORMAÇÃO, Com Ave Terrena

23/08 Palestra n.3 – TEATRO E ABJEÇÃO, com Janaína Leite

30/08 Palestra n.4 – DRAMATURGIA BRASILEIRA E FORMAS CONTEMPORÂNEAS, com Welington Andrade

FICHA TÉCNICA

Concepção e Encenação Carlos Canhameiro

Texto Álvares de Azevedo

Elenco Alitta | Danielli Mendes | José Roberto Jardim | Nilcéia Vicente

Músicos e trilha sonora original quarteto À Deriva

Beto Sporleder | Daniel Muller | Guilherme Marques | Rui Barossi

Cantores Paula Mirhan | Yantó

Cenário José Valdir Albuquerque | Carlos Canhameiro

Figurinos Anuro e Cacau Francisco

Iluminação Gabriele Souza

Coreografia Andreia Yonashiro | Danielli Mendes

Coro dos 20 anos Alana Campos | Beatriz Dultra | Beatriz Galli | Brenda Regio | Carolayne Coelho | Duda Fernachione | Eric Vivarelli | Fernanda de Almeida | Gabriel Viana | Gabriela Guimarães | Glenda Matos | Igor Rocha |Jaqueline Chiesa | Jaqueline Samaris | Joyce Dourado |Mar Lumini | Maria Clara | Sarah Lima | Victoria Ribeiro | Willian Galiazzi |

Som Pedro Canales

Operador de Luz Renan Estevão

Arte gráfica Isak Alves

Produção Gabs Ambrozia Corpo Rastreado

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