‘Eu sou o monstro que vos fala’ leva o teatro ao osso

Yo Soy el Monstruo que os Habla.
Foto; Enric Rubio Boca

Por Kil Abreu

  • O jornalista Kil Abreu viaja a convite do Sesc São Paulo

Não é fácil falar sobre o pensamento de Paul B. Preciado – nem sobre o seu teatro – sem cair em algum tipo de enquadramento. Dada a radicalidade produtiva dos seus princípios e sua fome de liberdade, qualquer movimento na dreção de definições categóricas tende a traí-lo.

Yo soy el monstruo que os habla é a versão teatral de sua famosa conferência, para centenas de psicanalistas, na Escola da Causa Freudiana, em Paris, em 2019. Àquela altura Preciado já havia passado por um processo autoinduzido de transição de gênero. Seu discurso, naquele evento, faria uma condenação demolidora do que ele considera os fundamentos da psicanálise e, mais especificamente, do edipismo que, no argumento do pensador, limita a compreensão da sexualidade humana ao circuito binário.

Coinidentemente um de seus inspiradores, Jacques Derrida, também fizera a ponte entre psicanálise e filosofia, no final dos anos de 1960, em um colóquio de psicanalistas. Ali Freud também esteve em questão. Pois, é de Derrida e de outros autores pós-estruturalistas que Preciado desdobra não só o conceito como também a prática, em ato contínuo, da ideia de desconstrução que pauta a fala reproduzida no espetáculo. Nos termos do artista espanhol, o desconstruir consiste na vivência radical e permanente do desmonte da lógica que funda a naturalização das identidades.

Em outra frente há a notável influência de Michel Foucault e seu repertório de relações entre mando, submissão, vigilância e punição. O tema da identidade como construção social dialoga com a noção de biopolítica, compreendida, em sentido negativo, como o cruzamento entre política e condição biológica à procura da administração da vida social e do apagameno da dissidência. Nesta direção, o diálogo feito com Kafka e com seu conto Comunicação a uma academia é um emblema muito poderoso, a aproximar a fábula do macaco ensinado a ser humano às tentativas de disciplinamento dos corpos e subjetividades não alinhadas.

No entanto, Preciado não se conforma à simples apresentação de demandas. Busca no avesso das normatizações o que chama de “saídas” da queixa. Quanto a isso, é evidente a afirmação das ações já discutidas antes na produção intelectual do autor bem como na sua vida ordinária, dos seus e das suas. Por exemplo, aquelas que dão conta da sua “transição” no livro “Testo Junkie – sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica”, em que ele narra o processo de transformação do corpo através das tecnologias farmacológicas, e as implicações físico-políticas da mudança.

Paul Beatriz Preciado: política das desidentidades.
Foto: Enric Rubio Boca

Em busca de um teatro descarnado

Nesta encenação da fala do filósofo os argumentos nos chegam cristalinos. O elemento mais contundente do ponto de vista da formalização cênica é a presença mesmo dos, das performers. Artistas trans e não binários enunciam, a cinco vozes, o pensamento de Preciado. É, naturalmente, uma exigência ética do discurso. Mais que o respeito à “representatividade”, trata-se de uma abertura para que o “estranho outro” (o monstro que nos fala) ganhe a dimensão de coro, como a nos dizer que em um futuro fluido as singularidades em trânsito são agentes de uma promessa de revolução ao mesmo tempo pessoal e coletiva.

Nos termos do que se propõe pensar, salvo engano são corpos e discursos que já não estão interessados apenas em contestar a estrutura e sim em ocupá-la. E, ainda assim, não como um complemento eventualmente permitido, mas como um suplemento inescapável, fugidio e autônomo.

Nas apresentações do Mirada não foi difícil encontrar, inclusive entre as pessoas trans, quem considere que o espetáculo sofre de um, por assim dizer, déficit de teatralidade. E, talvez, de alguma falta de criatividade na arrumação cênica, como nas entradas e saídas do elenco, na indumentária chapada em preto, na cenografia enxuta, no uso comedido da luz; no dispositivo cênico, enfim, visto em conjunto, que não se interessa em muito mais do que re-apresentar os elementos de um ambiente de colóquio acadêmico tradicional: púlpito, microfones, projeções. E, claro, a própria plateia, tomando o lugar dos ouvintes. De fato, não são detalhes desimportantes se considerarmos as possibilidades abertas pelo texto para uma encenação mais inquieta.

Por outro lado, este aparente comedimento dos meios dá o que pensar. Não parece gratuito se for contrastado com as questões de fundo que a montagem coloca em debate. Para uma fala inspirada fundamente no ideal da des-identidade (mesmo o papel de homem trans é, para Preciado, algo provisório), descolar o teatro da representação e, no limite, da própria teatralidade, é algo que pode ser visto como uma operação filosófica tão radical quanto o plano de pensamento que salta do texto. Nos termos em que o artista trata, estaríamos vendo a forma mostrar “aquilo que a ideologia esconde”, como disse Adorno em uma famosa passagem de “Lírica e sociedade”.

De uma maneira ou de outra, mesmo que não estejamos de acordo com a ideia de revolução defendida pelo artista, trata-se, sim, de um momento histórico em que a disputa dos valores está enraizada nas arenas do corpo, este espaço de luta. Ao assumir tal lugar, Preciado não deixa de ser, a seu modo, um operário incansável a inventar, a construir horizontes antes impensáveis para aquilo que chamamos de imaginação política.

  • *CENA ABERTA faz parte do projeto Arquipélago de fomento à crítica, apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : Ruína Acesa, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Agora Crítica, Tudo menos uma crítica e Satisfeita,  Yolanda?

Eu sou o monstro que vos fala

Apresentado no Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas.

Sesc Santos, nos dias 06 e 07 de Setembro/2024.

FICHA TÉCNICA

Elenco: Alex Silleras, Bambi, Victor Viruta, Andy Díaz e Faby Hernández

Texto e direção: Paul B. Preciado

Colaboração artística e cênica: Tanja Beyeler e Natalia Álvarez Simó

Assistente artístico: Alexandru Stanciu

Coordenação técnica: Bela Nagy

Produção: Elena Martínez/ElenaArtesEscénicas, com a colaboração do Centro de Cultura Contemporánea Conde Duque

Desenho de iluminação: Paco Ariza/Daniel Checa

Coordenação: Gabi Belvedere

Direção de palco: Gema Monja

Coordenação de produção no Brasil: Julia Gomes – Cenacult

Assistente de produção e intérprete no Brasil: Suia Legaspe

Coordenação técnica no Brasil: Luana Gouveia

Cenotécnicos no Brasil: Equipe de Wanderley Cenografia

Agradecimentos: Luis Luque, Carlota Ferrer, Jessica Velarde, Equipo CCC Conde Duque e Ayuntamiento de Madrid

Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas/Realização: SESC São Paulo

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