
Foto: Renato Mangolin
Kil Abreu
Este texto tem um limite evidente. Não pretende discutir as questões de linguagem e desempenho no espetáculo “Nossa história com Chico Buarque”. Para isso certamente haverá a crítica especializada em musicais. Aqui propomos ensaiar apenas algumas notas priorizando as ideias de fundo do trabalho, tentando desenhar minimamente sua condição histórica a partir de alguns acordos, aderências ou contrastes com a obra do compositor. Por isso talvez essas ideias pareçam um tanto exteriores à fatura artística propriamente dita, mas certamente não estão distantes do projeto de Buarque, para quem lírica e sociedade fazem um par que não pode ser separado. Em certa medida este também parece ser um dos eixos do espetáculo quando anuncia-se como um “épico íntimo”.
Nossa História com Chico Buarque tem dramaturgia dos jovens Vinícius Calderoni e Rafael Gomes, com direção do segundo, grande elenco e direção musical de Alfredo Del-Penho. A montagem toma como roteiro algumas dezenas de canções do compositor, agora arregimentadas para pontuar histórias que dariam conta da citada épica íntima. Uma “épica paradoxal”, como escreveu o Jean-Pierre Sarrazac, autor desse conceito. Trocando em miúdos, em resumo é um artifício de escrita indicativo de obras que tomam a vida cotidiana e os dilemas pessoais dos personagens como eixo para refletir o processo social. No caso, são as trajetórias de um punhado de gente em duas famílias brasileiras, gerações que vivem seus dilemas e alegrias mostrados na montagem em três momentos-chave: 1968 e o aperto dos nós políticos nos nossos pescoços, pela ditadura; 1989, já no ambiente da redemocratização do país, e 2022, apresentado como o momento de uma nova “ruptura” (que aqui vou chamar de golpe institucional mesmo).
O enredo pensado pelos rapazes é ambicioso, na extensão do percurso e na quantidade de lances dramáticos que a peça comporta em suas subtramas. Começa nos encontros e desencontros entre liberdade e interdição de gênero, na história de amor entre mulheres, tema presente na obra do compositor, atualizado aos nossos dias. E segue nas dificuldades dos artistas diante do mundo da mercadoria. Esse segundo aspecto coincide com o andamento real da “MPB” (considere as aspas) , quando a vida artística cristalizava-se entre o olhar retroativo para a tradição da música popular e a “aderência crítica” à indústria cultural. Algo que o próprio Chico viveu e traduziu reiteradamente em sua obra. Ou, em outros termos, o drama da recusa – o de resistir ao regime em chave estética experimental, como fizeram os tropicalistas, e a necessidade de operar o combate objetivamente, dentro do horror.
É algo que não está distante dos perrengues vividos por artistas naquelas décadas, como Vianinha, Gianfrancesco Guarnieri e pelo próprio Chico. Um tema absorvido, por exemplo, em Gota D’água, peça do autor e de Paulo Pontes. No espetáculo atual essas questões não estão apresentadas no primeiro plano, nem nestes termos dramáticos. Mas o conflito está lá. Pode ser visto no embate íntimo de Fernando, um músico que oscila entre a construção da carreira e a necessidade de juntar-se ao coletivo, contestar a ordem política.

Foto: Marcelo Rodolfo
Encenação e coringagem
O ampliado panorama histórico e familiar proejtado pela dramaturgia pede do público atenção extra-ordinária. Quem assistir vai poder verificar se este pedido é demasiado ou não. Aqui basta dizer que os mesmos atores e atrizes interpretam vários personagens. A solução encontrada foi algo próximo do que nos anos de 1960 chamou-se de “sistema coringa”, sobretudo a partir das experiências de Augusto Boal no Arena. Inspirada na cena popular e no agit prop, a coringagem tem duas funções elementares, uma econômica e outra estética. A econômica é fazer com poucos atores peças que em um teatro tradicional exigiriam grandes elencos. A segunda é a função crítica. No coringa o trânsito dos atores e atrizes entre vários personagens chama a atenção para a natureza fabril do teatro, tirando a plateia da mera vivência emocional.
No espetáculo, o exercício dinâmico dos deslocamentos e encaixes entre caracteres e atuantes favorece a desnaturalização das situações, como indica o teatro épico. Com isso, impede que o apelo melodramático (que aliás está bem apontado em cena) se enraíze no espectador, chamando-o para a razão. É um fundamento do teatro político, essencial em um autor como Brecht, com quem Chico Buarque tem grande afinidade artística. São recursos que a montagem dirigida por Gomes empresta. É uma leitura livre, bastante pertinente, do espírito dialético que pauta o cancioneiro do compositor e a sua obra dramática.
Sem exceção, o elenco circula bem na tarefa. É uma roda viva, com a participação de atrizes-cantoras muito experimentadas em musicais, como Soraya Ravenle e Laila Garin, que garantem a sustentação vocal já no lugar da excelência. Mas não são as únicas responsáveis pelo rendimento cênico e musical. Interpretação e música seguem sustentadas, com melhor apoio aqui ou ali nas atuações de Heloisa Jorge (outra garantia), Artur Volpi, Felipe Frazão, Francisco Salgado, Larissa Nunes, Luísa Vianna e Odilon Esteves (em São Paulo substituído em um dos finais de semana por Fabrício Licurgo).
Em que pese estas funções estéticas bem ativadas, a alternância entre gêneros narrativos e dramáticos, no modo como é operada, cria alguns problemas. O principal deles é que um espectador, uma espectadora mais politizados talvez sejam frustrados se houver expectativas a respeito de uma abordagem com posicionamentos diretos. O espetáculo é mais retrato que tese.
Se esta questão tiver interesse, podemos dizer, em um olhar estritamente técnico e em defesa da montagem, que este limite se impõe em parte porque há um preço a ser pago pelo esquematismo próprio à linguagem. A forma tradicional do gênero, levantada entre diálogos, situações e comentários musicais, já leva por si à necessidade de sínteses drásticas, que em um teatro estritamente dramático seriam verticalizadas. O musical é, por natureza, esquemático. No espetáculo, além desta condição, digamos, ontológica, ainda há a tarefa posta pela dramaturgia: a de apresentar um amplo painel em que devem caber, do ponto de vista dramático, as trajetórias particulares de três gerações. E do ponto de vista épico-histórico, os lances angulares do processo social nas últimas seis décadas de vida do país. Não é pouco.
No entanto essa mesma questão pode ser olhada em outra perspectiva menos favorável ao espetáculo. A montagem cênica destas histórias ao mesmo tempo íntimas e políticas indica uma visível redução da discussão social, subsumida no melodrama. Trata-se de uma necessidade – a de que os fios da meada da ação não sejam perdidos de vista – mas também, sem dúvida, de uma escolha determinada pelos autores. Quem assiste ao espetáculo há de perceber que os lances políticos parecem ser referenciados quase sempre como algo cuja gravidade tem que ser lida subliminarmente. Trata-se de uma escolha, de uma decisão. Escolha dramatúrgica que faz sentido se espelhada à criação do compositor. Buarque tem parte de sua obra – aquela criada durante a ditadura – erguida em metáforas. Mas também podemos nos perguntar se não se trata de uma estratégia comum em um teatro no qual é preciso agradar a plateias amplas.

Foto: Renato Mangolin
Olhos nos olhos
Pela economia interna da sua forma e pelas escolhas narrativas, Nossa história com Chico Buarque tem, então, a fresca vitalidade de uma cena que faz, com empenho curioso, o retrato panorâmico de aspectos da nossa sociabilidade quebradiça. E ao mesmo tempo tem este limite, o de não arranhar os seus paradoxos, o de não ofender o modelo de produção em que está inserido. É um trabalho que deve soar entusiasmante para uma plateia politizada de classe média, algo valioso em um momento de intensa disputa como agora. Mas não cria nenhum tipo de problema para esta consciência média que frui. Trabalha sobre juízos já assentados, não tem interesse nos impasses.
Pensemos em um exemplo que talvez seja útil. Está já no final , quando o coro canta a belíssima “Olhos nos olhos” (do álbum Caros Amigos, 1976). Como disse Adorno, a poesia revela aquilo que a ideologia esconde. E, de fato, ali o espetáculo é obrigado, por força da poesia, a mostrar o rabo da contradição:
“E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mais nem porquê
E tantas águas rolaram
Quantos homens/mulheres me amaram
Bem mais e melhor que você
(…) Olhos nos olhos, quero ver o que você diz
Quero ver como suporta me ver tão feliz”.
Naturalmente a canção, posta no fim, não é acidental. Aquilo é o ponto de chegada da narrativa, é o balanço de perdas, ganhos e danos. Composta na segunda metade da década de 1970, a música indica a conjuntura de um país que então começara a vislumbrar o que viria a ser a abertura política. É uma música que olha para trás (“e tantas águas rolaram”, com amantes muitos e melhores que você) e alcança em chave irônica uma promessa de flerte com a felicidade (“quero ver como suporta me ver tão feliz”).
Não será demais afirmar que o “tão feliz”, lido na data de hoje, só pode sobreviver em chave militante, não perturbada por nenhum tipo de aporia. Não vivemos a mesma conjuntura barra pesada do período militar. Temos até um ou outro desamor neste momento atrás das grades. Mas o entusiasmo, na real, só se sustenta como coisa relativa, pede uma fé engajada. Ou seja, é ideológico.
Esta observação já estaria a caminho de submeter o espetáculo a um projeto que não é o seu. . Então paremos por aqui, considerando ainda que, sim, o entusiasmo que ele traz também importa muito para o moral das tropas.
Pelo modelo de criação e produção e pela fatura cênica, Nossa história com Chico Buarque tende a falar melhor com os estratos sociais médios ou politicamente informados. Isto não deve ser visto como problema. Em um momento de franca afirmação do fascismo, é fundamental que as parcelas mais politizadas da população estejamos minimamente em sintonia para um combate que nos chama. O teatro pode colaborar com essa ecologia variada de que precisamos para chegar em uma sociedade minimamente justa. Daqui julgamos que neste momento é preciso apostar em um esquema que insista em agregar, apesar das diferenças, os que se mobilizam pensando em um país menos desigual. É uma bonita tarefa, com a qual o espetáculo pactua. Se sobreviveremos todos e todas do mesmo lado? A tomar pelo modo como as coisas vão, no futuro próximo nossa história já responderá.
• CENA ABERTA faz parte do projeto Arquipélago de fomento à crítica, apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : Ruína Acesa, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Agora Crítica, Tudo menos uma crítica e Satisfeita, Yolanda?
NOSSA HISTÓRIA COM CHICO BUARQUE
Texto: Rafael Gomes e Vinicius Calderoni
Músicas: Chico Buarque
Direção: Rafael Gomes
Direção Musical e Arranjos: Alfredo Del-Penho
Idealização e produção artística: Andréa Alves
Diretora de Projetos: Leila Maria Moreno
Com: Laila Garin, Heloisa Jorge, Artur Volpi, Felipe Frazão, Francisco Salgado, Larissa Nunes, Luísa Vianna e Odilon Esteves, com participações especiais de Soraya Ravenle e Ju Colombo.
Músicos: Alfredo Del Penho, Aline Falcão, Diego Zangado, Dirceu Leite e Ingrid Cavalcanti.
Cenografia: André Cortez
Iluminação: Wagner Antônio
Figurino: Kika Lopes e Rocio Moure
Desenho de som: Gabriel D’Angelo
Direção de Movimento e Coreografia: Fabrício Licursi
Design Gráfico: Beto Martins
Serviço
De 30 de janeiro a 28 de fevereiro | quinta a sábado, 20h e domingos 18h
Sessões extras:
22 de fevereiro (sábado), às 15h
26 de fevereiro (quarta), às 20h
Duração: 150 minutos
Local: Teatro Paulo Autran (Sesc Pinheiros)
Classificação: 14 anos
Sesc Pinheiros – Rua Paes Leme, 195