Entrevista com Edgar Castro

Foto: Keiny Andrade
Por Alberto Silva Neto
Há exatos 30 anos, o ator e diretor paraense Edgar Castro rumou do Norte para o Sudeste e radicou-se em São Paulo. Forjado no auge do movimento de teatro de grupo em Belém, na década de 1980, o artista também encontrou acolhimento nos coletivos da capital paulista. Recomeçou no Centro de Pesquisa Teatral do SESC (CPT), com Antunes Filho. Depois passou por Cia do Latão, Cia Livre e Cia São Jorge de Variedades, todas reconhecidas pelo público e pela crítica especializada. Ao lado das funções artísticas, também atuou na área da pedagogia teatral, colaborando com Escola Livre de Teatro de Santo André e TUSP – Teatro da Universidade de São Paulo, entre outras instituições.
Neste Março de 2025 Edgar volta a Belém, como um dos idealizadores e artista do projeto Escambo – Rede Parente, que propõe trocas artísticas e pedagógicas entre quatro coletivos de três regiões brasileiras. A ação é fomentada pelo edital Rede das Artes, da Funarte. Inicia pela capital paraense e depois segue por Manaus (AM), Campo Grande (MS) e São Paulo (SP), com espetáculos, oficinas e mesas públicas. Tudo gratuito. A ideia partiu da Cia Cisco, cujo núcleo é formado por Edgar junto a Donizeti Mazonas e Vinicius Torres Machado.
De São Paulo, Edgar concedeu entrevista ao ator, diretor e professor paraense Alberto Silva Neto, que também participa da programação como artista convidado. A programação completa pode ser consultada nas páginas do projeto nas redes sociais (Veja o serviço e mais informações no final desta matéria).

Foto: Eduardo Kalif
O projeto Escambo propõe trocas entre coletivos de quatro cidades, sendo duas do Norte. Romper com territorialidades colonialistas é uma premissa dessa ação?
Confesso que não havia pensado por essa perspectiva, mas acho absolutamente válida. Nós, da Cia Cisco, percebemos a existência de imensas lacunas nos roteiros das trocas culturais entre as regiões brasileiras. Um desenho muito desequilibrado. Daí nasceu a proposição desse escambo, visando a formação de uma rede de troca. A ideia é que isso seja um primeiro gesto para abrir outras frentes de intercâmbio. E que sirva para alterar determinadas percepções, que enxergam certos territórios com olhares carregados de exotismo e estereótipos.
Quais as suas lembranças mais remotas como espectador e artista, em Belém?
Eu venho de uma família de artistas. Minha avó paterna foi agente cultural em Icoaraci e minha mãe foi atriz de novelas de rádio. E na adolescência, vagando ali entre o Teatro Waldemar Henrique e o Anfiteatro da Praça da República, minha pedra fundante como espectador foi Mãe D’água, do Grupo Experiência. Aquilo foi um choque na medula do meu imaginário. E como artista, lembro do contato com a obra do encenador amazonense Francisco Carlos, na sua passagem por Belém. Aquela poética absolutamente transgressora em sua radicalidade escancarou as portas de um universo teatral fundamental para mim, naquela época.
Como é olhar agora para sua trajetória nessa cena paraense onde começou?
O teatro feito em Belém na década de 1980 era um dos mais vigorosos e criativos da cena brasileira. Isso se podia constatar quando produções paraenses de grupos como Experiência, Cena Aberta, Maromba, Gruta e Palha circulavam por festivais nacionais representativos, como Campina Grande (PB) e Ponta Grossa (PR). Ou quando faziam circulações via projetos federais, como o Mambembão. E não posso deixar de citar também o grupo Pé na Estrada, que ajudei a fundar. Tive a sorte de viver tudo aquilo.
O que motivou sua decisão de mudar para São Paulo, há exatos 30 anos?
Não acredito que a saída da sua aldeia seja algo imperativo para todas as pessoas. Acho que se pode nascer, crescer, produzir e ter uma existência plena sem atravessar as fronteiras físicas da sua cidade. No meu caso, a “andança” começa com um período fértil de uns catorze meses em Fortaleza, quando trabalhei em alguns projetos. Ao retornar a Belém já havia em mim o desejo de conhecer outras geografias. Algum tempo depois surgiu a chance de fazer um teste para a montagem paulistana de Rei Lear [peça de William Shakespeare], com Paulo Autran e direção de Ulysses Cruz. Acabei não passando, mas na sequência fiz um teste para o CPT, dirigido pelo Antunes Filho, onde fiquei por um tempo. E assim fui criando alguma raiz em São Paulo.

Foto: Nelson Kao
Quais princípios éticos e poéticos têm orientado suas escolhas profissionais?
Depois do CPT, praticamente tudo que fiz teve o DNA do chamado teatro de grupo. Foi esse o território que me acolheu, talvez por uma identificação que trazia de Belém. Sempre me identifiquei com modos de produção pautados na criação conjunta e dedicados a uma certa investigação, seja de questões da linguagem ou de questões sociais em uma perspectiva crítica em relação à nossa realidade. Sou um trabalhador do teatro que nunca frequentou muito esse lugar do teatro comercial. Mas, nada contra. Acho que tudo é caminho.
Há cinco anos, você participou da Caravana Mambembarca, a convite do grupo paraense Usina, quando quatro espetáculos e oito oficinas teatrais circularam por doze cidades ribeirinhas do Pará. O que ficou daquela vivência?
Foi uma das experiências mais significativas e poderosas que o teatro me proporcionou. Havia um sentido profundo na apresentação daqueles espetáculos naquelas cidades e para aquelas pessoas. Juntos, Dezuó – Breviário das águas, Solo de Marajó, Parésqui e Pachiculimba ofereciam um olhar dotado de uma beleza e de uma dignidade, sem nenhum tipo de idealização da existência ribeirinha, que era uma verdadeira ontologia. A potência das interlocuções estabelecidas entre os espetáculos e o público ficava muito evidente após cada sessão, com os retornos que recebíamos do público. Eu me sinto abençoado de ter participado. Foi norteador para mim. Eu faria Caravana Mambembarca para o resto da vida.
Qual abordagem a Cia Cisco faz da peça Com os bolsos cheios de pão, do dramaturgo romeno Matéi Visniec, que o projeto Escambo vai trazer a Belém?
Quem apresentou esse texto ao grupo foi o Donizeti Mazonas. Ele foi escrito na década de 1980, quando a Romênia vivia uma ditadura brutal. Nasce de uma experiência real que o Visniec teve, quando um cachorro foi jogado vivo dentro de um buraco. Ao ler a peça, buscando iluminar aspectos da nossa realidade encontramos no embate verbal entre as duas personagens da obra uma possibilidade de refletir sobre coisas que estamos vivendo, como um excesso de opinião no diálogo público e uma dificuldade de escuta do outro, que resulta em uma ausência de ações efetivas sobre problemas sociais. É como se a indignação que move as opiniões se dissipasse na hora de agir. Essa foi a via que adotamos para acessar esse texto teatral que admiramos tanto.
Quais suas inquietações sobre as práticas pedagógicas no teatro brasileiro?
Com base naquilo que vivo e observo mais diretamente, me inquieto com o desafio de elaborar práticas pedagógicas nas quais a indispensável sintonia com as demandas sociais do nosso tempo não faça abrir mão de um rigor técnico imprescindível ao ofício. Afinal, sabemos que facão desamolado não abre caminho na mata densa.
Como você vê o papel da arte e dos artistas nesse debate sobre a iminência do esgotamento na capacidade do planeta em renovar as condições para a vida?
Confesso que essa questão desperta em mim certo ceticismo sobre o efetivo alcance da arte diante de tamanho desafio. Talvez a coerência ética entre o discurso na cena e fora dela seja um bom ponto de partida. Também acredito que um degrau determinante seja uma presença efetiva e propositiva dos artistas nas instâncias de organização da sociedade civil, colaborando na formulação de estratégias. Acredito que só a cena não dá conta.
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Huma
Momo – Um ato poético para testemunhas
A fabulosa história do guri-árvore
Com os bolsos cheios de pão
SERVIÇO
O Projeto Escambo – Rede Parente começa em Belém/PA, de 08 a 30 de Março, em vários espaços, e segue por Manaus (AM), Campo Grande (MS) e São Paulo (SP). Conta com os seguintes espetáculos e intervenções:
Grupo Usina (de Belém/PA). Espetáculo: Momo – Um ato poético para testemunhas
Fulano di tal – Grupo de Teatro (de Campo Grande/MS). Espetáculo: A fabulosa história do guri-árvore
F. Rider, Ly Skant & Koia (de Manaus/AM). Performance: HUMA
Cia. Cisco (São Paulo/SP). Espetáculo: Com os bolsos cheios de pão
A programação completa de espetáculos, performance, oficinas e mesas públicas pode ser consultada em @projetoescamboredeparente no Instagram.
Esta entrevista foi publicada originalmente pelo jornal Diário do Pará, edição online, em 07/03/2025.
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