“Cárcere…”: pulsão de vida em cena

Cena de Cárcere ou porque as mulheres viram búfalos. Foto: Solomon Plaza.

Crítica ao espetáculo Cárcere ou porque as mulheres viram búfalos, da Cia de Teatro Heliópolis.

Por Rodrigo Nascimento – Especial Festival de Curitiba.*

Como dar conta de apresentar em cena um dos problemas sociais e políticos mais agudos da realidade brasileira sem reduzi-lo a uma exposição sociológica que apague das vidas sua singularidade? Ou, ao contrário disso, como acompanhar um drama íntimo sem que sua dimensão inescapavelmente política seja engolida pelo enquadramento sentimental e individualizante? A oposição assim posta, se parece muito didática, não deixa de possuir sua parcela de interesse, pois ilustra um tipo de busca formal que inquietou grupos de teatro brasileiros por muitas décadas.

Cárcere ou porque as mulheres viram búfalos, espetáculo da Cia de Teatro Heliópolis, dirigido por Miguel Rocha e presente no Festival de Curitiba, vai no nervo dessa dificuldade, atravessando-a com uma síntese contundente. Mas síntese não significa encerramento do problema em uma forma pacificada, sem tensões. Pelo contrário: todos os elementos mobilizados em cena se combinam – mesmo que pela via do choque mútuo – para tentar dar conta da matéria contraditória.

Esse esforço de síntese, que congrega na forma do espetáculo elementos épicos e dramáticos, mesclados à coreografia, ao ritual e à música, já havia sido realizado em espetáculos anteriores, como (In)justiça (2019). Ali, após longa pesquisa documental, o grupo também se debruçou sobre um problema estrutural – o caráter de classe e as contradições do sistema judiciário brasileiro – pensando-o não só a partir da relação entre Estado e indivíduo, mas também a partir das relações dos indivíduos entre si.

Cena de Cárcere ou porque as mulheres viram búfalos. Foto: Solomon Plaza.

Em Cárcere ou porque as mulheres viram búfalos, o tema é o encarceramento em massa da população negra, visto a partir da perspectiva daquelas que são costumeiramente esquecidas: as mulheres. O engenho da dramaturgia de Dione Carlos está em investir nesse dimensionamento ao dividir a trama em planos discursivos que se interrelacionam. O primeiro deles, o da casa, dá conta do cotidiano de duas irmãs gêmeas, Maria das Dores (Jucimara Canteiro) e Maria dos Prazeres (Dalma Régia), que têm a prisão como um dado do passado e do presente. O pai de ambas, o marido de Maria dos Prazeres e agora o filho de Maria das Dores foram e são homens encarcerados. Já nesse enquadramento há uma perspectivação do sofrimento imediato – o do filho Gabriel (Daniel Freytas), injustamente preso devido a uma denúncia errônea nas redes – como um problema não só geracional, mas social.

O drama familiar assim emoldurado ganha inevitável dimensão histórica, pois ecoa o quadro de encarceramento sistemático da população negra periférica brasileira. Na mesma esteira, o segundo plano discursivo, do cárcere, traz cenas coralizadas, em que uma massa de homens apequena Gabriel em meio às brigas de facção e às ameaças mútuas – numa espiral de adiamento eterno da alegada “função ressocializadora” da prisão.

Nessa dramaturgia de quadros, o passado se atualiza: elos de um projeto que, há quatrocentos anos, estabeleceu que periferias e prisões são território racializado. Daí o poder evocativo dos versos de Castro Alves, reiterados em cena: entre os navios negreiros da velha ordem colonial e os camburões policiais da moderna nação brasileira há mais vínculos de continuidade que de ruptura. A questão para a qual intelectuais negros e negras têm sistematicamente apontado é como essa nossa modernização conservadora reinventa as tecnologias de aniquilamento: seja pelas elaborações celebrativas de uma pretensa “democracia racial”, seja pelo sistema jurídico racista e classista, seja pela naturalização pelos “cidadãos de bem” do genocídio do povo preto e pobre.

Cena de Cárcere ou porque as mulheres viram búfalos. Foto: Solomon Plaza.

Ainda assim, a cena não se reduz a uma sociologia do horror. No plano íntimo, o problema é dimensionado pela perspectiva daquelas que ficaram para trás e se recusam a ser enquadradas por imagens de martírio e de espera: mulheres fabricam a vida em um cotidiano afetuoso, solidário e cheio de autocuidado. E se a atuação de Jucimara Canteiro e Dalma Régia de início soa excessivamente estilizada, é porque parece ter como foco menos a escavação de psicologias e mais o desenho, pelo corpo, daquilo que Brecht denominava Gestus social: atitudes corporais e jogos fisionômicos que desenham uma forma social de se comportar. Não são tipos engessados, mas personagens forjadas na práxis cotidiana de muitas periferias brasileiras: a das mulheres que se tornam búfalas para sobreviver e arrancar da vida alguma forma de felicidade.

Corpo e símbolo, resistência e beleza

O aspecto mais expressivo e politicamente mais produtivo do espetáculo advém do movimento corporal em cena, que não opera como simples comentário. Graças a ele, o registro naturalista da fábula é redimensionado e alçado à condição de símbolo.

Há uma dramaturgia vigorosa do corpo que atua, em primeiro lugar, nas coreografias. Não possuem virtuosismo no desenho dos movimentos, mas têm força sugestiva. Nas cenas de prisão, os braços se contorcem, os rostos deslizam em máscaras distorcidas; evocam a dor extrema e o absurdo de um sistema que opera na lógica do esmagamento das subjetividades. Mas nas coreografias das cenas que articulam casa e cárcere, eles sugerem a vibração do corpo que luta: um tipo de resposta às coerções que se exercem em todos os níveis – um efeito-manada coletivo, a sublimar pela dança as muitas formas de encarceramento e violência.

Cena de Cárcere ou porque as mulheres viram búfalos. Foto: Solomon Plaza.

Esse apelo à nossa imaginação, que sugere sem necessariamente significar, está também na poderosa figura do búfalo em cena. Ele evoca o rito ancestral e, mais do que simplesmente ilustrar ou emoldurar, agencia toda a trama. Na narrativa mítica iorubá, Iansã (Oyá) é a orixá que, após matar as outras mulheres enciumadas de Ogum, volta a viver na floresta e deixa os chifres com seus filhos, para que possa ser invocada numa situação de perigo. Vincula-se, portanto, à imagem da mulher pronta para o combate, a mulher-búfalo que é mãe, irmã e parceira nas lutas. Em suma, uma chave em todo diversa daquela da mãe sofredora – figuração típica da tradição cristã – que está entregue ao lamento perpétuo e paralisante.

Corpo-manada e corpo-búfalo, assim alçados à condição de símbolo, eletrizam o espetáculo com poesia. O ápice é a cena final, em que Dalma Régia, plena no domínio de sua fisicalidade, assume o palco, vestida de vermelho e com os cornos gigantescos do animal. Os tambores dominam cada vez mais altos; o som, progressivamente, nos convoca a um tipo outro de prontidão. Assim impositivo, sugere que, a despeito de tudo, não estamos falando só de morte. Em cena vibra uma poderosa pulsão de vida.  

Cena de Cárcere ou porque as mulheres viram búfalos. Foto: Solomon Plaza.

* Rodrigo Nascimento esteve presente no Festival de Curitiba e atuou como crítico a convite da curadoria. Este texto foi inicialmente publicado na página do Festival.

SERVIÇO:
SESC INTERLAGOS (Av. Manuel Soares, 1100)
De 21/04 a 23/04 – Sexta a Domingo
Das 16h às 18h
GRÁTIS

Companhia de Teatro Heliópolis. @ciadeteatroheliopolislis

FICHA TÉCNICA:
Encenação: Miguel Rocha.
Assistência de Direção: Davi Guimarães.
Texto: Dione Carlos.
Elenco: Antônio Valdevino, Dalma Régia, Danyel Freitas, Davi Guimarães, Isabelle Rocha, Jefferson Matias, Jucimara Canteiro, Priscila Modesto e Walmir Bess.
Direção Musical: Renato Navarro.
Assistência de Direção Musical: César Martini.
Musicistas: Alisson Amador (percussão), Amanda Abá (violoncelo), Denise Oliveira (violino) e Jennifer Cardoso (viola).
Cenografia: Eliseu Weide.
Iluminação: Miguel Rocha e Toninho Rodrigues.
Figurino: Samara Costa.
Assistência de Figurino: Clara Njambela.
Costureira: Yaisa Bispo.
Operação de Som: Lucas Bressanin.
Operação de Luz: Nicholas Matheus.
Cenotecnia: Wanderley Silva.
Provocação vocal, arranjos e composição da música do ‘manifesto das mulheres’: Bel Borges.
Provocação vocal, orientação em atuação-musicalidade e arranjos – percussão ‘chamado de Iansã’: Luciano Mendes de Jesus.
Estudo da prática corporal e direção de movimento: Érika Moura.
Provocação Cênica: Bernadeth Alves, Carminda Mendes André, Maria Fernanda Vomero.
Comentadores: Bruno Paes Manso e Salloma Salomão.
Mesas de Debates: Juliana Borges, Preta Ferreira, Roberto da Silva e Salloma Salomão, com mediação de Maria Fernanda Vomero.
Orientação de Dança Afro: Janete Santiago.
Direção de Produção: Dalma Régia.
Produção Executiva: Davi Guimarães e Miguel Rocha.
Fotos: Rick Barneschi, Tiggaz e Weslei Barba.
Idealização e Produção: Companhia de Teatro Heliópolis.

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