“Quando das máquinas param” e a câmera como testemunha

Crítica ao espetáculo Quando as Máquinas Param, com direção de Kiko Rieser.

Por Rodrigo Nascimento.

Larissa Ferrara e André Kirmayr em cena de Quando as máquinas param

A imagem em preto e branco, o rádio sintonizando músicas da Jovem Guarda e as gírias de época… Tudo parece compor um experimento em vídeo-teatro de tipo documental, um convite a um Brasil cujas faces, texturas e conflitos já não conhecemos de todo. No entanto, a montagem dirigida por Kiko Rieser de Quando as Máquinas Param atualiza a peça de Plínio Marcos (a versão definitiva é de 1967) por manter pulsante uma violência que insiste em não ficar no passado.

Não se trata de discussão política aberta sobre o desemprego e sobre o insuperável fantasma da miséria. Aqui, Plínio Marcos miniaturiza em chave íntima o drama social dos que veem sua vida reduzida a uma única dimensão. Desde o início o problema aparece como única força atrativa e dispersiva: é a ele que sempre se retorna e é a partir dele que se aciona uma crise que torna dois amantes estranhos uns aos outros. Acompanhamos o jogo contínuo e repetitivo de consolações mútuas de um casal de periferia, constituído de momentos algo ingênuos e melosos em que a esposa Nina (Larissa Ferrara) tenta consolar seu marido Zé (André Kirmayr), um operário desempregado revoltado e reativo que vê seu próprio desemprego como resultado das circunstâncias comezinhas ou da conjuntura de crise. O jogo é constituído também de cenas em que o marido premia a esposa abnegada com carícias e devolutivas de que se não fosse por ela, ele “já estaria na merda”.

Talvez por isso sejam tão bons os cenários e figurinos de Kleber Montanheiro e Thaís Boneville, feitos de uma simplicidade chã que sugere uma dignidade na pobreza, mesmo quando falta a mistura na panela; bem como a escolha da paleta fílmica de Kiko Rieser por imagens em preto e branco. Tudo funciona menos como forma de colar a montagem a uma época e mais como atenuante para o idílio adocicado que brota das constantes consolações provisórias do casal. Composição que politiza um problema que, como um fantasma, espreita do lado de fora e relembra que a miséria ainda ronda. Afinal, como adocicar o cotidiano de um grupo social que Plínio Marcos retrata em peças tão decisivas como Barrela (1958), Dois perdidos numa noite suja (1966) e Navalha na Carne (1967)?

André Kirmayr e Larissa Ferrara em cena de Quando as máquinas param.

São dilemas íntimos, políticos na medida em que o íntimo se vincula com os impasses históricos dessa massa de pessoas que não tem vínculo com a produção ou com o mercado de trabalho formal. Já no contexto da Revolução Industrial, Marx diagnosticaria esse setor que mal chega a ser uma classe como um grupo de pessoas no limite da sobrevivência e com pouca perspectiva de inserção. Estão, portanto, a um passo da objetificação completa – a mesma que aliena a costureira Nina nos romances da radionovela, ou que entretém Zé nas disputas futebolísticas que se tornam equivalentes ao amor da esposa. Qualquer colorido, portanto, só seria potente se emergisse como contraponto irônico a essa alienação.

Mas Plínio Marcos não reduz suas personagens a um imobilismo determinista. Elas estão colocadas em uma situação de limite existencial e, de alguma forma, lutam. Entretanto, não há horizonte na ação organizada (a mesma que humaniza as personagens de Guarnieri em Eles não usam Black-tie), pois os vínculos sociais parecem esfacelados naquele Brasil pré-AI-5; e a saída por meio dos arranjos entre amigos ou familiares também não é simples. Afinal, que escolha preservaria aquilo que de algum modo dá sentido aos dias? Daí advém, como dispositivo trágico, o nó que rompe o ciclo repetitivo que até então estruturou a peça: o orgulho de Zé. Ele não permite que a esposa, submissa, mas prática, solicite ajuda da mãe ou busque auxílio no vizinho taxista, pois Zé vê aí um duplo fracasso, seja o de profissional malsucedido, seja o do macho incapaz de prover. Ou seja, a solução depende de tocar no único reduto de orgulho pessoal do operário sem formação especializada.

Do cruzamento desse conflito interior mediado por um histórico patriarcalismo com uma crise plantada pelo contexto de desindustrialização acelerada emerge a ruptura. Aqui, a interpretação de Larissa Ferrara e André Kirmayr não se deixa acachapar nem por um naturalismo determinista, nem pelo sistema de compensação do casal. Ainda que em alguns momentos falte a verve da intensidade que certos contrapontos dramáticos demandem, há valorização das nuances, dos pequenos interditos e da crescente desagregação, que fica visível no tom violento que cresce nas cenas finais.

André Kirmayr e Larissa Ferrara em cena de Quando as máquinas param.

Da mesma maneira, a direção de Kiko Rieser sintetiza a força que este embate de vontades assume no contexto brasileiro. Se o drama burguês enquanto gênero se estruturou na Europa iluminista no embate direto de sujeitos livres, como fazê-lo no contexto urbano brasileiro, no qual a vontade dos sujeitos vem atravessada pelas limitações de uma realidade economicamente desigual? Daí a força da câmera que capta as limitações de uma época em preto e branco, feita de escolhas precárias e relações embotadas. Ao manter o efeito de tomada sem cortes, reduzir os closes e acompanhar sutilmente a movimentação do casal pelos cômodos miúdos, capta o conflito doméstico não só como um espectador o captaria no teatro, mas também como uma testemunha, um vizinho que, também temendo ser agarrado pelo desemprego e pela violência e igualmente cheio de curiosidade, não pisca por um minuto sequer. Essa câmera testemunhal é a mesma que, de início, celebra os ecos amplos que chegam da rua, mas que depois sai sutilmente pela porta quando o corpo da mulher violentada cai no chão. Gesto que traz para a forma visual o deslizamento das tensões político-domésticas dos lares que hoje, em plena pandemia, se tornaram masmorras anônimas.

Não se trata, portanto, de dramaturgia ou teatro documental. No Brasil de Bolsonaro, o mesmo desemprego cresce em escala alucinante e o machismo canhestro – vivíssimo – ganha respaldo institucional. Sofremos, no espaço íntimo e no público, a mesma deterioração dos vínculos. Por isso mesmo é tão vivo este experimento em vídeo-teatro: testemunha um Brasil que dos anos 60 até agora deu poucos respiros em technicolor. 

SERVIÇO

Quando as Máquinas Param
03/5 a 11/05 de 2021 – Segundas e terças, às 20h, 80min. Gratuito.
Acesso pelo Youtube do Centro Cultural São Paulo (CCSP): Youtube CCSP.

FICHA TÉCNICA
Texto: Plínio Marcos
Direção: Kiko Rieser
Elenco: André Kirmayr e Larissa Ferrara
Cenário e figurinos: Kleber Montanheiro e Thaís Boneville
Iluminação: Kleber Montanheiro
Trilha sonora: Kiko Rieser
Assistência de direção: Fernanda Lorenzoni
Edição e mixagem da trilha: Rodrigo Florentino
Cenotécnico: Evas Carreteiro
Colaboração no processo: Amazyles de Almeida
Vozes atores radionovela: Amanda Acosta e Joca Andreazza
Voz locução novela: André Kirmayr
Vozes crianças: Augusto Cavalcanti Menck, Augusto Henrique, Matteo Brandão Procópio, Pablo Azevedo e Vicente Acosta Fusco
Direção de produção: Kiko Rieser
Assistência de produção e redes sociais: Jaddy Minarelli
Técnico audiovisual e transmissão: Gustavo Bricks
Assistente de transmissão: João Paulo Balentani
Câmera: Kiko Rieser
Técnico de som: Uirá Wagner
Registro fotográfico: Heloísa Bortz
Arte gráfica: Giovani Tozi
Assessoria de imprensa: Pombo Correio
Realização: Companhia Colateral e Rieser Produções Artísticas
Projeto realizado com apoio do edital ProAC LAB nº 36

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