Com os bolsos cheios de pão: o fundo do poço é aqui.

Crítica a partir do espetáculo Com os bolsos cheios de pão, de Matei Visniéc, dirigido por Vinícius Torres Machado.

Por Rodrigo Alves do Nascimento

O ator Edgar Castro, como o “Homem de bengala”, e o ator Donizeti Mazonas, como o “Homem de chapéu”,
em cena de Com os bolsos cheios de pão. Foto: Keiny Andrade.

Certa vez o diretor de teatro russo Meyhold comentou, entre o irritado e o jocoso, que não entendia por que em As Três Irmãs, de Tchékhov, mulheres de recursos como elas simplesmente não compravam um bilhete de trem e partiam para Moscou, ao invés de lamentarem aquela vida distante da capital. A peça termina sem que nenhuma delas parta. Vivem sob o signo da espera, como anos mais tarde também esperarão os personagens de Beckett, em Esperando Godot.  E o dramaturgo romeno Matéi Visniec tenta abertamente voltar a este tema não só revisitando em mais de uma peça o universo dos dois dramaturgos – O Último Godot (1998) e A Máquina Tchékhov (2005) -, mas colocando no centro de uma de suas peças curtas, Com os bolsos cheios de pão, dois personagens incapazes de levar adiante qualquer gesto decidido ou qualquer ação concreta para mudar a realidade.

O espetáculo, que tem direção de Vinícius Torres Machado e está em cartaz no Sesc Pompeia (logo entra em temporada no teatro Alfredo Mesquita, em São Paulo), tem um ponto de partida simples: dois homens estão diante de um poço desativado em que alguém jogou um cachorro. A pungência da situação na qual se encontra o animal parece pedir uma ação rápida, mas termina por se revelar a um só tempo trágica e ridícula: ambos discutem hipóteses, argumentam saídas, pensam sobre a relação entre homens e animais; contudo, não tomam nenhuma medida concreta para tirar o bicho de lá.

O conjunto, como fábula, reverbera a mesma inação angustiante que parece ter irritado o diretor russo no início do século XX. Mas se Meyerhold de algum modo se via contaminado pela energia de um período de experimentação revolucionária, em que os sujeitos mais progressistas demandavam uma invenção e uma agilidade avessas a qualquer “compasso de espera”, nosso contexto atual tem enquadramento diverso, pois a inação das personagens, mais que anti-exemplo, de algum modo parece se mostrar espelho de nossa condição.

O ator Edgar Castro, como o “Homem de bengala”, e o ator Donizeti Mazonas, como o “Homem de chapéu”,
em cena de Com os bolsos cheios de pão. Foto: Keiny Andrade.

Ainda que o próprio Visniec se antecipe dizendo que o que lhe interessa é a investigação do absurdo cotidiano, filiando-se diretamente a uma linhagem que, segundo ele, vai de Tchékhov a Beckett, é preciso desconfiar dessa angústia de influência. O rótulo de “absurdista” quase sempre nivela nuances sob a ideia de que nada faz sentido em um mundo pós-Auschwitz e de que nossa própria existência, hoje, carece de qualquer direção válida. No entanto, mesmo que ambientada em uma época historicamente não localizável, o vigor de Com os bolsos de cheios de pão parece estar naquilo que reverbera sobre nossas crenças de agora. Trata-se menos de refletir a respeito de uma angústia existencial e mais de parodiar ideologias que se encontram aqui e agora, vivíssimas, em plena operação: aquelas das soluções simples e das boas intenções. Por isso, mesmo o único gesto concreto da peça, o de atirar as migalhas de pão ao cachorro, não deixa de ser comentário ao horror ideológico disfarçado de humanismo que tanto se vê hoje.

Nessa esteira, a direção de Vinícius Torres Machado acerta ao mesclar a aridez quase impenetrável da peça de Visniec com um sutil humorismo no trabalho dos atores: a matéria trágica vem dialogada na conversação entre os dois personagens representados por Edgar Castro e Donizeti Mazonas, que se assemelham a clowns.  O “Homem de bengala” e o “Homem de chapéu” são menos sujeitos com identidades e desejos íntimos do que clowns errantes, cujos nomes próprios não interessam. Parecem movimentar-se, pois um é o avesso ou duplo do outro, o que confere à interação aquela dinâmica lúdica que a comédia tão vivamente permite explorar. Mas o movimento é, na verdade, vazio, repetitivo, materializado nos corpos ágeis dos atores que mimetizam a ação que se anuncia, mas nunca é levada a cabo. Os corpos brincam girando do mesmo modo que as palavras dão volteios. Anunciam a saída (bater no possível agressor do cachorro, descer ao fundo do poço, pegar o animal), mas imediatamente regressam à estaca zero. Tudo se assemelha àquele jogo de esconde-esconde da contemporaneidade, em que é possível transbordar as redes sociais de frases motivacionais que convidam à ação e imediatamente esquecê-las, substituí-las ou negá-las. O paradoxo é o mesmo: abundância e esquecimento.

Em cima, o ator Edgar Castro, como o “Homem de bengala”; embaixo, o ator Donizeti Mazonas, como o “Homem de chapéu”.
Foto: Keiny Andrade.

Assim, esfumaçam o trágico da vida não vivida no ridículo da inconsciência do abismo. São antes de tudo seres objetificados. Reduzidos ao espaço ínfimo de uma circunferência, que a cenografia de Eliseu Weide transforma em uma espécie de poço invertido, não podemos nos furtar a imaginar em cena de uma sinistra cela invisível, na qual seres hipervalorizam o que dizem quando, na verdade, são apenas reprodutores de ideias prontas, de caridades mecânicas e de violências comuns. Todos os clichês dessa nossa sociedade em que a opacidade das relações de capital culmina na reificação completa dos sujeitos.

Verdadeira paródia do drama tradicional europeu, com seu teatro das ações vigorosas, da vontade decidida, do diálogo efetivo e da subjetividade íntegra, essa peça de Visniec pode ser ao mesmo tempo espelho e balanço de nossa expectativa que nunca se converte em mudança radical. Mas parece ser também afirmação de que não se trata de voltar à velha crença do querer-fazer, como hoje propagandeiam os coachs em cada esquina: antes é preciso considerar que talvez nós mesmos criamos cachorros indefesos para não enfrentar o fato de que, como aquelas personagens tão superiores e convictas, somos parte da barbárie. E talvez também por isso, em determinado momento do espetáculo, a iluminação sutil de Wagner Antonio faça o jogo inesperado de virar os spots para a plateia, como que sugerindo que o fundo do poço também possa ser aqui e agora.

FICHA TÉCNICA
Texto: Matéi Visniec
Tradução: Fábio Fonseca de Melo
Direção: Vinicius Torres Machado
Elenco: Edgar Castro e Donizeti Mazonas
Trilha Sonora: Pedro Canales
Cenário e Figurinos: Eliseu Weide
Iluminação: Wagner Antonio
Técnica de palco: Léo Sousa
Assistente de Direção: Rafael Costa e Jessica Mancini
Produção Executiva: Jota Rafaelli MoviCena Produções

SERVIÇO
Com os Bolsos Cheios de Pão
Dias 5, 6, 8, 9, 10, 11, 15, 16, 17 e 18 de março
Terça a sábado, às 21h; domingo, às 18h

Local: Teatro Sesc Pompeia
Ingressos: R$ 40,00 (inteira); R$ 20,00 (credencial plena: trabalhador do comércio de bens, serviços e turismo matriculado no Sesc e dependentes; meia: estudante, servidor de escola pública, + 60 anos, aposentados e pessoas com deficiência).
Classificação indicativa: 14 anos.
Capacidade: 144 lugares
Duração: 70 minutos

Bilheteria*:
Terça a sexta, das 10h às 21h30.
Sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h30.

É necessário apresentar comprovante de vacinação contra COVID-19 das duas doses, a partir de 12 anos, e documento com foto para ingressar nas unidades do Sesc no Estado de São Paulo.

Circulação Municipal *

Teatro Alfredo Mesquita
Avenida Santos Dumont, 1770 – Santana
De 19 de março a 3 de abril
Sábado, 21h; domingo, 19h
198 lugares – Gratuito – distribuição 1 hora antes do espetáculo

Teatro Cacilda Becker
Rua Tito, 295 – Lapa
De 22 de abril a 15 de maio
Sábado, 21h; domingo, 19h
198 lugares – Gratuito – distribuição 1 hora antes do espetáculo

*Este projeto foi contemplado pela 11ª Edição do Prêmio Zé Renato de Teatro para a Cidade de São Paulo – Secretaria Municipal de Cultura.

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