“A pornografia é uma forma de conhecimento sobre o nosso tempo”

Entrevista com Janaína Leite

Por Kil Abreu

Janaína Leite. Foto:André Cherri

No processo violento de mercantilização da arte, as formas são criadas e ocupadas velozmente. Por isso nem sempre é fácil identificar a cifra particular que diferencia os criadores radicais dos seus epígonos.

O que especializa o trabalho criativo de Janaína Leite é que nele encontramos bem mais que modos de discurso já usuais na cena contemporânea (por exemplo, o documentário, a peça-palestra, os teatros do real). Estes suportes estão de fato lá. Mas o que identifica especialmente sua criação é que eles servem à discussão de temas flagrados sempre em algum ponto nevrálgico da vida, mobilizados nestas formas através de procedimentos-limite. Invenções que não buscam solucionar e sim aprofundar impasses amplos tanto quanto os impasses de linguagem do próprio teatro. Nesta entrevista ao Cena Aberta, Janaína fala sobre sua trajetória e sobre as relações entre teatro e pornografia a partir do espetáculo História do olho – um conto de fadas pornô-noir, que encerra temporada no TUSP, em São Paulo.

A montagem, produzida em parceria com a Mostra internacional de teatro de São Paulo (MITsp), nasce de longa prospecção teórica e cênica em que certos enfrentamentos são retomados.  Com uma equipe grande de criadores e criadoras, entre os quais doze artistas profissionais e amadores vindes do mundo da pornografia, o espetáculo é inspirado na novela História do Olho, de Georges Bataille. Conta sobre três jovens vivendo um processo de iniciação sexual nada ortodoxo. Na paralela, faz cotejamentos com as histórias e práticas das pessoas que performam. Do sol ao ovo, da lua ao ânus, da metáfora à metonímia, do voyeurismo ao ato – a experiência que o espetáculo oferece nos mostra como certas zonas de sombra na vida são, paradoxalmente, os lugares de revelação. Isto inclui o teatro e nosso horizonte de expectativas dentro dele.

Cena Aberta – A pornografia como material de cena vem desde Stabat Mater ou vem de antes? Como ocorreu o seu interesse pelo assunto?

Janaína Leite – Minha relação com a pornografia antes do Stabat era quase inexistente. Via pontualmente, não lia sobre, não sabia nada sobre as pessoas que produzem ou pensam.  Em Stabat Mater ela vem como um dispositivo para atritar maternidade e sexualidade. Naquele momento eu já tinha uma série de referências para discutir esses assuntos do ponto de vista teórico, mas acreditava que o processo deveria guardar uma margem para o desconhecido, para a experiência, para o que eu não sabia sobre os territórios que me predispus a investigar. Era preciso que tudo isso fosse um ato, tanto para esses campos – o feminismo, a pornografia, o teatro – quanto para a minha própria história, minha própria sexualidade e, também, para a artista que eu sou; e eu achei que a pornografia traria isso.

Conte um pouco sobre como chegaram à novela de Georges Bataille, sobre como foi o enfrentamento desse material e sobre o cruzamento dele com o que vinha dos artistas que performam.

JL: Encontrei o Georges Bataille ainda no processo de Feminino Abjeto 2; mas naquele momento eu estava interessada na biografia dele, nos temas que ele abordava, como o erotismo, a noção de dispêndio, seus estudos sobre o sacrifício. Mais tarde, já me relacionando com a pornografia, comecei a me interessar pela ideia de escopofilia. Camming 101 noites e os pornoshows nasceram do que eu chamei de “ensaios escopofílicos”. Ao pensar a história do olhar cheguei no livro História do Olho. Daí, em um segundo momento, comecei a pensar nessa fábula pornográfica sendo encenada com trabalhadores sexuais. Como seria encontrar o inorgânico da literatura com o orgânico do corpo? Como seria atritar as biografias dos performers com as personagens do livro? Tivemos o Núcleo do Olho como um grande laboratório de experimentação [Núcleo de pesquisa on-line que se deu por tarefa pesquisar as relações entre teatro e pornografia], foi onde encontrei os performers que integram o projeto hoje. É uma sorte ter tido um espaço livre do compromisso de uma estreia, no qual podíamos testar mil procedimentos, nos aproximarmos das pessoas sem a pressão de formar um “elenco”. Foi muito bom poder ter essas etapas preservadas: experimentar a pornografia como linguagem, depois aproximá-la de um primeiro excerto do livro que foi o capítulo O armário Normando, dentro da dinâmica dos pornoshows e, somente mais tarde, começar a tomar o livro como estrutura narrativa.

História do olho… Bataille em performance. Foto: Flavio Barollo e Alécio Cézar/@casadazica

Você trabalhou com profissionais e também com amadores, o que é indispensável à vocação performativa da montagem. São pessoas que vêm da pornografia em diferentes posições, da indústria de filmes ao consumo e até de certa pedagogia para o pornô.  Fale sobre como foi o seu encontro com estas pessoas e a criação com elas.

JL: Teria que fazer um longo percurso, porque esse processo, mais do que todos os outros, é feito da matéria desses encontros, cada um, cada uma com quem fui cruzando, suas histórias e modos de praticar, ver, viver a pornografia. Cito três momentos marcantes para mim: o encontro com André Medeiros Martins, que já tinha trabalhado comigo em Feminino Abjeto 2 e que se tornou fundamental nessa nova criação. O André me impediu de recuar diante dos verdadeiros problemas que a pornografia apresenta ao teatro, seus impasses éticos, suas bordas estéticas, seus contratos de fruição. Um segundo encontro foi com Anita Saltiel, camgirl e escritora, que conheci ainda no processo do Stabat Mater e que me disse que após ver a peça teve coragem de contar para a mãe que era trabalhadora sexual. Anita – ou Nittie – tem realmente uma dupla persona: a angelical Anita e a despudorada Nittie, me sugerindo as primeiras ideias de fazer espelhar Simone e Marcela – personagens da novela – na biografia de pessoas que trabalhassem com pornografia. Por fim, cito o experimento radical dos pornoshows, nascido no Núcleo do olho. Foram 8 meses inteiramente on-line, no contexto de isolamento, que fez daquelas janelas do zoom um portal para essas histórias tão distintas e essas práticas tão diversas de corpo, de sexo, de cena. Uma disponibilidade, uma entrega, um interesse, uma coragem. Foi, sem dúvida, um dos momentos na pandemia nos quais eu senti que era possível estarmos engajados, vinculados, afetados no espaço virtual, a quilômetros de distância, mediados por uma tela. Foi ali, sem dúvida, que começamos o processo de História do Olho.

Houve quem dissesse que o espetáculo “não é teatro”. No entanto a montagem não está fora de certas tradições formais do teatro. Guardadas as proporções, pode perfeitamente ser comparada, por exemplo, a uma cena popular de variedades, aos procedimentos do teatro-circo ou do cabaré. A que você credita essa deslegitimação, então, e o que pensa sobre isso? Como tem percebido o efeito da abjeção, com a qual você trabalha, no aspecto da recepção do espetáculo?

JL: Sim! Acho a peça super teatral! De uma teatralidade quase naif nos códigos a que se filia para botar a fábula em cena. Só que tem zero ironia nisso. Depois da pandemia eu estava ávida por teatro, gente em cena se olhando no olho, o faz de conta que só o teatro tem. Tem muito de celebração do teatro na peça, celebração do artifício, da ficção. Mas aí vem o que ando experimentando há alguns anos já, e que lança esse tipo de suspeita (“não é teatro”) sobre o que eu faço. Não acho isso ruim. Tem a ver com limites, acordos, expectativas. Não tenho nenhuma intenção de chocar ninguém (outra crítica que surge), mas acho muito legal essa instabilidade, esse curto-circuito que, para alguns, gera decepção e até revolta, mas em mim produz pensamento e emoção. Como pergunta uma artista que me abala nesses termos, Angélica Liddell: “Quem ousa dizer o que é o teatro?”.

Sobre a abjeção, é bem curioso no caso de História do Olho. Para nós foi até surpreendente ver as reações, porque fomos nos habituando demais com tudo. As coisas foram nascendo de forma muito orgânica e conectada com a realidade, desejos e práticas de cada um. Cada coisa que tem ali era uma forma de nos conhecermos uns aos outros e nos vincularmos. Então nós temos uma relação muito lúdica e afetiva com tudo o que aconteceu no processo e acontece na peça. Não há absolutamente nada no trabalho que tenha nascido com a intenção de provocar repulsa ou choque, pelo contrário: é um dos processos mais amorosos, respeitosos e lúdicos que já vivi.

Na via oposta, afirmativa, fale sobre a pornografia como arte cênica.

JL: A pornografia pode ser várias coisas, assim como a arte pode ser várias coisas. Não tenho a intenção de teorizar sobre a pornografia porque, no final das contas, tanto em Stabat quanto em Camming a pornografia interessava como prática, como modo de vida, como experiência. No História do Olho teve esse dado a mais de passar a experimentar como linguagem mesmo. Eu brinco que a gente faz “porno-circo”. A gente nunca teve a vontade de encontrar em cena alguma coisa que fosse a excitação sexual real, ainda que ela aconteça e possa acontecer de forma imprevisível. Mas essa nunca foi a questão central nesse processo. A gente brincava que queria o “show” do sexo explícito, os efeitos e macetes dessa linguagem que é altamente espetacular e performática. Paul Preciado fala sobre o trabalho da prostituta que é uma mistura de atriz, massagista e publicitária!

A pornografia é entretenimento. “É uma forma de conhecimento sobre o nosso tempo”, como diz a Isabel Soares em cena. Ela é uma prática do corpo e do desejo. E sim: a pornografia também é uma arte cênica. Agora… que tipo de arte cênica? Que arte cênica vai ser a própria arte cênica? Depende! Depende de cada projeto, cada intenção. Intenção artística, pessoal, política, humana… Depende dos meios, depende dos agentes, depende das engrenagens profundas e superficiais da sociedade inteira também.

Encenação: “Processo lúdico e amoroso”. Foto: Flavio Barollo e Alécio Cézar/@casadazica

Judith Butler recoloca a questão da pornografia em termos mais produtivos que os do debate sobre a censura ou não censura. Diz sobre a pornografia como discurso e não apenas como conduta localizada no terreno moral. Neste caminho, não deveria ser combatida nem proibida e sim verificada através da ressignificação das performances que estão sendo atuadas. Pois bem, você é uma encenadora. A posição da mulher tem muitas questões no campo de produção do imaginário pornográfico como, por exemplo, a objetificação dos corpos femininos, muito recorrente na indústria de filmes. Pensando nessas frentes, as do discurso e das relações de poder, o que você pode dizer sobre a pornografia no teatro enquanto ato político, não em geral, mas sob o ponto de vista feminino?

Sem dúvida as experiências de Stabat Mater e Camming 101 noites foram divisoras de águas. Gestos de profanação, no sentido que fala o Agamben: dar uma nova dinamicidade ao jogo jogado, mover as peças de lugar, brincar com o imaginário posto. Imaginário sobre pornografia, sobre teatro, sobre homens e mulheres. Uma mulher que escolhe estar na pornografia de forma autônoma e consciente, seja para ganhar dinheiro, seja para ter prazer, seja para fazer arte, é sempre um ato político. Justamente pela história de objetificação extrema que você menciona. Acrescentar “no teatro” a essa equação para mim seria redundante. Porque não deveria significar nada além do que já significa. Mas eu entendo a sua pergunta porque, obviamente, existe um campo moral que é mais forte do que eu mesma podia imaginar.

O que pode nos dizer sobre o futuro próximo do seu trabalho, como dramaturga e encenadora?

JL: Bom, tem essa coisa de um processo espiralar – acho que de tão intensos que eles acabam sendo –  para um próximo. Falei que cheguei no História do olho achando que ia encontrar algo sobre a “história do olhar” – e para minha surpresa o que encontrei foi algo totalmente diferente. Bataille fala muito mais de um olho cego – perfurado por um chifre de touro ou ofuscado pelo sol. Tem uma escuridão imensa – a noite do desconhecido, ele diz –  que tem me tocado de um jeito que eu não sei formular ainda. E, talvez, justamente por isso, fique essa ponta solta, essa sensação de que o obsceno ali, o irrepresentável, seja algo da ordem do limite com a morte, o limite da própria consciência. Esse processo foi atravessado por muitas coisas. Não consigo evitar a confluência entre arte e vida. Eu não busco isso. São sempre atravessamentos mesmo. Escrevi um projeto chamado Fundo. Começou a virar uma trilogia virtual e tem uma parte dele com estreia prevista no Festival de Edimburgo, no programa “Voices from the South”, no ano que vem. Lá vai se chamar “Deeper”.

Leia a crítica ao espetáculo em: https://cenaaberta.com.br/2022/06/12/sobre-teatro-pornografia-e-pulsao-de-vida/)

Mais sobre Janaína Leite: https://www.janainaleite.com.br/

Serviço:

História do olho – um conto de fadas pornô-noir

De 8 de julho a 7 de agosto, quinta-feira a sábado às 19h e domingo às 18h.

Tusp – Teatro da Universidade de São Paulo – Rua Maria Antônia, 294 – Consolação, São Paulo (metrô Higienópolis-Mackenzie). Telefone – (11) 3123-5223. Capacidade – 70 lugares. 180 minutos (com intervalo) | 18 anos | R$ 30,00 e R$ 15,00 (a venda pelo site sympla.com.br)

Idealização, Direção, Dramaturgia e Performance – Janaína Leite. Dramaturgismo e Assistência de Direção – Lara Duarte e André Medeiros Martins. Performers Criadores e Depoimentos – André Medeiros Martins, Anita Saltiel, Armr’Ore Erormray, Carô Calsone, Cusko, Dadu Figlioulo, Georgia Vitrilis, Isabel Soares, Lucas Scudellari, Ultra Martini, Vinithekid e Tadzio Veiga. Composições Originais e Performance – André Medeiros Martins, Ultra Martini e Vinithekid. Luz – Wagner Antônio. Figurino – Melina Schleder. Preparação Corporal – Lara Duarte. Arranjos e Desenho de Som – Renato Navarro. Produção Musical – Mateus Capelo. Suspensão – Pombo Morcego, Blue Mermaid e performers convidades. Concepção de Manequins Articulados e Coreografia – Tadzio Veiga. Pesquisa Tourada – Carô Calsone e Isabel Soares. Cenotécnicos – Edson Luna e Wanderley Wagner da Silva. Direção de Produção – Carla Estefan. Assistentes de Produção – Samuel Rodrigues e Letícia Karen. Coordenação de Palco – Cusko. Operação de Som ao Vivo – Vinithekid. Técnico de Som – Renato Navarro. Operação de Luz – Felipe Tchaça e Aline Sayuri. Colaboradores – Eliane Robert Moraes, Christine Greiner, Biaggio Pecorelli, Bruna Kury, Ediyporn, Beto Propheta, Artur Kon e Rodolfo Valente. Assessoria de Imprensa – Nossa Senhora da Pauta. Fotos – Cacá Bernardes. Design Gráfico – Sato do Brasil. Ilustração da Arte – Flopes. Foto para Ilustração – Dadu Figlioulo. Mídias Sociais – André Medeiros Martins. Gestão de Projeto, Produção e Difusão – Metro Gestão Cultural. Apoio – Teatro Mars e Centro Cultural da Diversidade. Coprodução – MITsp-Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Realização – Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, 13° Prêmio Zé Renato de Teatro, TUSP, e Metro Gestão Cultural.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *