Por Kil Abreu
O roteiro de Pureza é inspirado em uma história real: no interior do Maranhão o jovem oleiro Abel Lopes (Matheus Abreu) sai para o mundo em busca de vida melhor e deixa para trás a mãe, Pureza Loyola Lopes (no filme, Dira Paes). Sem notícias do filho ela segue em busca. Amazônia adentro vai pelo interior do Pará, onde descobre um esquema de trabalho análogo à escravidão. Encontra primeiro a velha ordem de mando e submissão que, no limite, engana e assassina. O Brasil do Séc. XVI reflui sobre o Brasil do Séc. XXI sem mais delongas. Mas felizmente não sem contestação. Por isso, pela permanência da vergonha, a história de Pureza é exemplar. Junto com outras mobilizou o governo federal a assumir a gerência do problema em meados dos anos 90. O filme é também sobre isso.
A saga, a contrapelo do estado geral das coisas, é o percurso de uma mulher que movida pelo amor ao filho desmonta um episódio pontual. Ela embrenha-se no coração da maldade e consegue ajuda das instituições – não sem antes ter que provar que não está mentindo. É apenas uma entre as centenas de ocorrências que neste momento mesmo estão em curso país adentro, no campo e nas cidades. Não é apenas na Amazônia. São recorrentes, por exemplo, em uma megalópole como São Paulo. Ações dos órgãos oficiais mostrando trabalhadoras e trabalhadores latinos – inclusive crianças – em condição indigna de sobrevivência, dependentes de dívidas impagáveis, não são incomuns. As tecelagens da capital, muitas delas a serviço de grandes marcas, estão aí. Se quisermos estender um pouco mais a vista não será exagero dizer que o sequestro de direitos trabalhistas nos últimos anos também faz parte desse flerte com o imaginário escravista, agora devidamente disciplinado com o verniz da segurança institucional – que não quer dizer segurança e bem estar para quem trabalha, quer dizer apenas que o patronato está seguro e resguardado. Em 2021 ações fiscais da Inspeção do trabalho resgataram em torno de dois mil trabalhadores e trabalhadoras sobrevivendo em condição análoga à escravidão. A maior parte estava em áreas rurais.
Arte e documento
Sobre a forma do filme, mesmo quem não tem muito repertório para discutir questões de linguagem terá sua atenção chamada para algumas críticas. O crítico da Folha de São Paulo, Inácio Araujo, por exemplo, escreveu um texto curioso, esforçando-se por fazer a separação entre documento e arte, entre politicidade e invenção. Em suma, ele valoriza a história pelo teor de denúncia, mas decreta que o filme “vale pouco como arte”. Infelizmente não apresenta a balança que pesa, o metro que mede o teor “artístico” idealizado. Prefere, em um argumento excêntrico, lamentar que o diretor Renato Barbieri não seja Glauber Rocha e que o filme não seja suficientemente “abstrato”, como segundo ele são os filmes do Cinema novo. Quanto a isso não será difícil dizer que o mais elementar da crítica é ver a obra no seu próprio campo, no espaço em que ela ocupa, e não onde ela não pretende estar.
Mais empenhado na direção que interessa é o olhar da crítica de cinema paraense Luzia Miranda Álvares, que localizou o filme na linha do drama documental (ou “docudrama”), em que o tecido de ficção não é mesmo totalmente autônomo. A estética tem que ser compreendida nessa medida, são essas as suas coordenadas, e não outras.
De qualquer maneira, um espectador não especializado certamente não deixará de perceber que o filme tem dois esteios femininos que o sustentam, em cada uma dessas direções – realidade e invenção – : primeiro a história verdadeira de Pureza Lopes, sua intuição, amor e busca por justiça. E depois a presença luminosa de Dira Paes. Dira é uma atriz grande. Mas nunca esperemos disso nada na linha da grandiloquência, da exibição gratuita dos recursos de interpretação. Sua trajetória no cinema já nos ensinou: é uma intérprete que não se anuncia demais, e que por isso mesmo nos ganha pela inteireza com que compõe cada papel. É o que ela faz aqui, uma atuação altamente dramática mas em uma medida justa, em intensidades necessárias que nunca são maior que a personagem. Este mútuo amparo – Pureza, Dira – garante as melhores qualidades do filme.
E já que estamos falando de trabalho, é boa notícia que parte do elenco seja composto por atores e atrizes do Norte, onde a história aconteceu. Não é condição, mas é uma abertura da maior importância. É bom também ver que artistas com maior visibilidade como Antonio Grassi e Walderez de Barros são coadjuvantes de atores amazônidas como Claudio Barros, Alberto Silva Neto, Guto Galvão e Goretti Ribeiro. Todos em bons desempenhos. Flavio Bauraqui também faz um mandante verossímil e bem sustentado.
Em síntese, Pureza é um drama que dá conta do arco histórico da nossa sociabilidade. Antes mesmo de chegarmos naquilo que a fita nos conta em particular, é a miséria de maior parte da população, de mãos dadas com a consciência escravocrata à brasileira, agora administrada sob as leis de um desigual “mercado de trabalho”, o que está subliminarmente em discussão. Queiramos ou não, isto é o que devemos chamar de estética. A plasticidade, por perturbadora que seja, tem que ser buscada neste lugar. É uma necessidade, porque é dele e não de outro que o horizonte político pode ser inventado.
O filme segue em cartaz em São Paulo e outras cidades.
FICHA TÉCNICA
Direção: Renato Barbieri
Produção: Marcus Ligocki Jr.
Elenco:
Dira Paes
Matheus Abreu
Flávio Bauraqui
Mariana Nunes
Sérgio Sartório
Claudio Barros
Alberto Silva Neto
Jefferson Mendes
Guto Galvão
Gregório Benevides
João Gott
Enoque Marinho
Goretti Ribeiro
Paulo Marat
Felipe Lima
Andrade Júnior
Roger Paes
Marta Ferreira
Amanda Perdigão
Zuhmar de Nazaré
Participação Especial
Walderez de Barros
Antônio Grassi
Giulio Lopes
Paulo Paiva
Núcleo de Trabalhadores Rurais do MST de MarabáAdonis Mendes
Celio Ferreira
Dalvan dos Santos
Erisvaldo da Silva
Jonas Silva
Euzimar de Souza
João Batista Lima
Joeldo Marques
José Gildaro
Matias Gomes
Milson Almeida
Roteiro: Renato Barbieri, Marcus Ligocki Jr.
Ideia Original: Hugo Santarém
Fotografia: Felipe Reinheimer
Montagem: Marcelo Moraes, EDT
Música: Kevin Riepl
Direção de Arte: Zé Luca
Distribuição: Downtown Filmes, Paris Filmes