Excelência da cena popular

Eliel Carvalho, Jocasta e Nelson Albuquerque: elenco afinado.
Foto: Martins Victor

Kil Abreu

O grupo cearense Pavilhão da Magnólia completa 18 anos de estrada avançando tanto no amadurecimento estético quanto na necessária estruturação dos meios de produção.

A fábula que inspirou o batismo do coletivo não parece ser gratuita. Na História sem fim, de Michael Ende, o Nada ameaça tomar conta de um reino. Mas é a trupe inteira de seres, reunida no Pavilhão da torre, que inventa uma forma de resistência. Não será preciso esforço para fazer relações com os modos de sobrevivência descobertos pelos grupos de teatro, Brasil afora. São os coletivos que têm criado, na experiência artística compartilhada, os campos de permanência em ambientes quase sempre áridos para a vida da arte e dos artistas. Isto aconteceu já nas raias do drama nos últimos quatro anos, mas as dificuldades para existir não são de agora, especialmente para o pessoal do Norte e do Nordeste. A desigualdade reincidente no processo social brasileiro alcança a produção cultural da mesma maneira grave com que se enraizou nas outras áreas da vida do país.

Estas notas não são acidentais para pensar o espetáculo apresentado no Janeiro Brasileiro da Comédia, em São José do Rio Preto, pelo grupo de Fortaleza. Maquinista, história escrita pelo dramaturgo e poeta paraibano Astier Basilio, também é uma contação sobre como os deserdados inventam meios e exercitam a imaginação política para tentar escapar da injustiça e dos desmandos de poderosos. Inspirada em fatos reais ocorridos em meados da década de 1920 no povoado pernambucano de Floresta, a narrativa fala sobre um determinado trambiqueiro (Antonio Maquinista), que vende o sonho do estrelato teatral a um sem número de gentes, dos coronéis do lugar a Lampião, sem, no entanto, entregar o prometido. Instalado, o quiproquó assimila tanto a participação involuntária de William Shakespeare (a peça a ser representada é Macbeth) quanto o imaginário popular projetado entre repentes e rocks-baião. A tentativa de vingança do andar de baixo é costurada em passagens nas quais se ridicularizam as figuras de poder. Mas a pena de Astier Basílio não faz muitas distinções, não livra a cara de ninguém. São motivos para a caricaturização tanto o coronelato quanto a Igreja e, ainda, Virgulino e seu bando.

O tema barroco do grande teatro do mundo está no texto e na encenação, a reger tanto o sentido filosófico quanto as soluções formais da montagem. O maquinista, nos é explicado, é o sujeito responsável pela condução e pela manutenção do trem, mas é igualmente aquele que trabalha no coração do brinquedo, o camarada que sabe lidar com seus mecanismos e também, no caso, aquele que tenta titeritar os que participam do jogo.

A ambivalência trabalhada na dramaturgia inspira uma encenação viva, sustentada. O encontro do Pavilhão da Magnólia com a diretora Herê Aquino foi dos mais felizes. A montagem é rigorosa. Na marcação espacial, no desenho da gestualidade, na coringagem do elenco pelos personagens, no andamento marcado pelo ritmo veloz que, no entanto, não esquece dos necessários respiros. Uma cena, enfim, cujo acabamento favorece e vitaliza o texto ao mesmo tempo em que os atos cênicos se constituem como uma segunda determinante camada da dramaturgia.

Porém, esta disciplina não é mero esteticismo. Não inviabiliza o espírito livre que rege a montagem. Uma parte do interesse que o espetáculo gera certamente tem a ver com o sabor de presenciarmos um quadro que flui aparentemente sem amarras. As bordas firmes que demarcam a encenação abrem um espaço interno para a circulação vital. O melhor exemplo deste procedimento está no trabalho dos atores e atrizes. Denise Costa, Eliel Carvalho, Jocasta, Jota Júnior Santos, Nelson Albuquerque e Silvianne Lima nos oferecem um banquete deleitoso de tipos bem construídos. Eles nos conquistam não só pelos desempenhos bem afirmados individualmente como também pelo azeitamento notável do conjunto. O elenco imprime, nas rápidas e bem ensaiadas entradas e saídas das personagens, uma dinâmica intensa que nos mobiliza e apoia o efeito de comicidade. Esta é a melhor manifestação do que costumamos chamar teatralidade – a capacidade de os artistas criarem um estado comum, de empatia, entre a cena e a plateia. É algo muito justo em um trabalho que tem entre os seus assuntos o próprio teatro.

Uma ocorrência lateral nesta apresentação que aconteceu no Complexo Esportivo Pinheirinho é útil para amparar o argumento. Ali não é uma sala de teatro e não é um espaço totalmente aberto. É uma quadra esportiva em que o som reverbera – o que criou dificuldades de entendimento do texto para uma parte do público. Na conversa que se seguiu ao espetáculo concluímos que, a despeito disso, a decisão do festival, de fazer naquele lugar, para aquela plateia composta basicamente por trabalhadores e trabalhadoras da periferia geográfica da cidade, foi acertada. E acabou por testar acidentalmente esse aspecto, o da teatralidade do espetáculo, que reverberou também em quem não acompanhou totalmente o texto.

Rock-baião“: música e narrativa.
Foto: Martins Victor

Cena popular e memória

A montagem tem uma vocação popular muito evidente. Um teatro que não se faz só do pescoço para cima. Tudo o que se vê no corpo inteiro da cena cumpre funções expressivas. Tudo se mobiliza para indicar o ponto de vista do espetáculo, a começar pela excelente trilha sonora, que articulada à sonoplastia inventa um agora indispensável caminho narrativo; a indumentária, com peças que mudam de função e favorecem a agilidade nas trocas de personagens; a cenografia móvel, que cumpre várias diferentes tarefas e significados. Cada um desses elementos poderia ser tema de apreciações específicas, tão rica é a presença e a provocação imagética que vem deles.

Partindo do pressuposto de que a forma já é o pensamento, talvez possamos falar de uma cena antropológica. Mas sem discurso teórico e nem mesmo próxima do chamado Teatro Antropológico, como o conhecemos. Quando se diz “antropológico” é porque o espetáculo faz, através dos seus materiais, uma arqueologia da sociabilidade e da afeição coletivas. Uma arqueologia não romantizada – o que é, aliás, característico da comédia, quase sempre interessada na materialidade das relações.

A montagem é então um documento poético sobre lugares de poder, sobre as relações de mando e submissão e sobre a luta em que estão empenhados os sobreviventes das margens, através da intuição e, sobretudo, da inteligência. Nesse sentido, a abertura e o encerramento do espetáculo dão o que pensar: uma figura de mulher, erguida, segurando uma balança. É uma imagem deliberadamente mais simbólica que as do miolo. Seria um totem a nos lembrar o arquétipo da grande mãe? Uma alegoria a clamar pela Justiça? São várias as possibilidades de leitura. De qualquer maneira é uma imagem que parece apontar, na circularidade que anuncia (está no início e no final da encenação), tanto a preocupação com as condições desiguais de existência quanto a esperança de que assim não seja. O trabalho do Pavilhão da Magnólia seria, pois, na chave que o cômico permite, memória viva e ato crítico, a olhar passado e presente. Algo que pode ser lido como desejo de iluminar as saídas encontradas pelas pessoas que estão nos andares de baixo da sociedade, para continuar existindo. Caminhos percorridos entre as margens da imaginação e do risco. Que isto seja feito não através dos emblemas já assentados na história oficial e sim através da re-apresentação daqueles que a história tentou soterrar é a melhor notícia possível.

Silvianne Lima e Denise Costa: memória e ato crítico.
Foto: Martins Victor

Maquinista

Espetáculo apresentado no festival Janeiro Brasileiro da Comédia, em São José do Rio Preto, promovido pela Prefeitura Municipal de São José do Rio Preto.

Local: Complexo Esportivo Pinheirinho (Bairro Solo Sagrado). Em 22/01/2023

Ficha Técnica

Direção: Herê Aquino

Texto: Astier Basílio

Elenco: Denise Costa, Eliel Carvalho, Jocasta, Jota Júnior Santos, Nelson Albuquerque, Silvianne Lima

Cenário: Criação Coletiva do grupo

Adereços: Beethoven Cavalcante

Cenotécnico: Ricardo Barroso e Auricélio

(Coca Cola)

Figurinos: Rodrigo Ferreira e Joaquim Sotero.

Consultoria de Figurino “Prólogo”: Marina Carleial

Assistente de Figurino: Beethoven Cavalcante e Denise Costa  

Maquiagem e Caracterização: Rodrigo Ferreira 

Iluminação: Wallace Rios

Operação de luz: Aline Rodrigues

Música e Sonoplastia: Jocasta e Eliel Carvalho

Música Final: Orlângelo Leal, Jocasta e Eliel Carvalho

Letra: A partir do Livro “O Poemas dos Abraços: O sistema/1 Os funcionários não…” de Eduardo Galeano

Realização: Grupo Pavilhão da Magnólia

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