Confissão e história, memória e invenção

Ney Piacentini e Alexandre Rosa. Foto: João Maria Jr.

Por Kil Abreu

Há discussões críticas muito interessantes em tono de Infância, livro de memórias de Graciliano Ramos publicado em 1945 (mas, antes, em fragmentos, desde 1938 em jornais do Brasil e de Lisboa). Nelas um dos temas recorrentes é o trânsito entre o ficcional e o documental – e suas fronteiras.  Grandes leitores como Álvaro Lins e Otto Maria Carpeaux discutiram o quanto a obra tem de documento e o quanto tem de imaginação. Parece algo acidental e de interesse restrito aos estudos literários, mas é que no caso de Graciliano as repercussões entre memória e invenção são mesmo o centro; é delas que podem ser intuídos os ecos permanentes que alcançam a raiz da sua literatura. É um debate com interesse em jogar luz nas condições subjetivas que motivam a escrita e que fomentaram a forma literária, assim como sobre o contexto objetivo, de época, que também a oportunizou. E esta é também, propomos, uma chave com a qual se pode abrir a porta do delicado – e violento – espetáculo montado por Ney Piacentini e Alexandre Rosa, em cartaz na SP Escola de Teatro.

A narrativa de Graciliano dá conta das recordações de menino até a pré-adolescência, nas primeiras décadas do Século XX. E da assujeitada relação familiar e comunitária, nos descaminhos de um garoto filho da classe média nordestina, entre a zona rural de Alagoas e as vilas do Sertão de Pernambuco. O embate desigual com os adultos é marcado pelo desamparo e o trauma vivenciado entredentes. “Medo. Foi o medo que me orientou nos meus primeiros anos, pavor”. No livro, a alfabetização difícil e a angústia diante das figuras de autoridade é vivida no claustro da fazenda, na restrição ao convívio com outras crianças e nos ambientes vigiados – a igreja, a loja do pai, a escola, a própria casa, habitada pela ameaça de seres humanos que parecem ter nascido para o castigo. Tudo trama para a castração de uma imaginada liberdade.

É no contraste entre a narração da infelicidade àquele tempo, a dificuldade do menino  com as letras, e a concepção hegemônica atual sobre como se deve educar, que nasce o efeito dramático da montagem. É o que nos comove: a pena solidária vinda talvez, ao menos para uma parte de nós, do aprendizado ético a respeito da educação humanista. No entanto, a superação da ideia de que o cinturão, a palmatória e a tortura psicológica seriam os instrumentos prioritários da pedagogia não dão conta de explicar totalmente nosso lamento sobre o terror descrito por Graciliano Ramos e representado no espetáculo. A condenação do terror deve-se também ao entendimento sobre condições históricas específicas da vida brasileira quanto a um regime disciplinar injusto, que continua nos organizando. O vício autoritário e o enredo histórico, distendidos em novos termos, são as sombras que seguem sobre nós, como a cara ameaçadora do pai sobre o menino, incrivelmente bem descrita pelo autor.

A professora Luciana Araújo Marques acompanhou e debateu a temporada da Biblioteca Mário de Andrade e, entre outras coisas, nos provocou a pensar sobre como a solidão política e existencial do Graciliano de Infância intui e prepara a consciência política retomada em Memórias do Cárcere. Ou de como este último justifica, em época mais avançada, o garoto de outrora. São experiências espelhadas sobre a prisão, sobre formas de enfrentamento ou submissão e, de todo modo, sobre o trauma da consciência em regimes autoritários, no ambiente particular da família tanto quanto sob a tutela do Estado. Se vistas assim, são obras que desenham o lastro histórico em perspectivas ampliadas, para trás e para a frente. Nos oferecem uma avaliação do passado, que é o do próprio autor, mas que o antecede. E, logo percebemos, agora nos alcança, nos aborda nas suas indagações essencialmente insuperadas, em um lugar onde os ciclos que mantêm as desigualdades renovam-se no arco geral das forças econômicas do capital e espraiam-se nos vícios de uma cultura política perversa – o que inclui as formas de comportamento.

Infância – História e vida íntima. Foto: Edson Lopes Jr.

Encenação         

Senão no primeiro plano da encenação, ao menos na sintonia fina esta é uma das questões que os artistas nos provocam a ver.   Nos recortes feitos para a dramaturgia  sobressai a escolha pelas passagens sobre o drama e, depois, o maravilhamento do garoto diante dos livros.  No espetáculo os livros são um céu estrelado e, como tal, estão à vista. Penoso, porém, é alcançá-los. Mas é neste espaço, no intervalo entre a tragédia pessoal da criança açoitada e o encontro com a própria vocação que o teatro se ergue em uma artesania singular. No percurso entre a dor do letramento por métodos perversos e a descoberta livre, definitiva, do amor pelas palavras, a teatralidade encontra inspiração para o seu melhor efeito, sem se deixar espetacularizar. A cena enxuta – talvez uma condição de produção – nos chega como escolha poética, não soa fortuita.  Nos leva a pensar que a necessidade de invenção dentro de um mundo materialmente contingenciado vaza do livro para o palco. As soluções cênicas, simples e significativas, põem em movimento o minucioso trabalho construtivo que orquestra objetos, instrumentos musicais, livros, cadernos, indumentária, a favor da representação. São materiais que servem simbolicamente ao narrado e que passem a figurar, na base das sugestões, os ambientes e circunstâncias contadas pelo autor.  

Para que esta economia e movimento internos à montagem funcionem colabora principalmente o fato de Ney Piacentini ser um ator veterano com ótimo domínio dos seus recursos. Tem musculatura para sustentar a tarefa, que vai além do “bem narrar”, como usualmente se espera do teatro inspirado em literatura. O texto de Graciliano é límpido na objetividade do relato e fundo no pensamento, encharcado num lirismo em que o sentimento poético projeta-se duro, não derramado. Conduzir aqueles materiais junto com seu parceiro e operar as passagens entre os modos de apresentar as personagens sem ficar refém da representação strictu sensu vale ao ator o melhor rendimento. Para isso certamente contribui a sua formação brechtiana, que performa o desenho geral das personagens, nos mostra a sua inteireza sem, entretanto, deixar-se arrastar para a psicologia estrita. No trabalho do ator há uma percepção racional acesa, a distinguir com firmeza figurações e comentários, a deslizar entre mimese e distanciamento. Um trabalho em que é notável a presença afirmada de uma emoção atenta à sua medida e utilidade.

O segundo pilar da cena é a música criada por Alexandre Rosa. Somos chamados para uma “teatralização musicada”. É algo, convenhamos, temeroso porque dito assim pode parecer um recital sem bordas, e já vimos muita coisa naufragar neste formato. A música revela-se logo, entretanto, não como ilustração sonora de estados e situações e sim como criação acústica inquieta, a fugir dos enquadramentos e tendendo quase sempre à autonomia. Vitaliza o que está sendo representado nem sempre pela aderência e sim através dos contrastes e dissonâncias. É uma composição que abraça as marcações, a gestualidade, os deslocamentos, os tempos e sentidos sem perder sua vocação experimental.  O trabalho de Piacentini e Rosa nos chega, assim, como uma ótima síntese do sofrimento e da palavra livre graciliana, com o seu magnífico salto, ao final, para fora da queixa.

O espetáculo não é só sobre a submissão da criança diante da paternidade cruel. É também a respeito do mando e da obediência em uma sociabilidade desde sempre altamente autoritária. Para usar o ponto de vista de Antonio Candido, um dos mais felizes estudiosos do autor, o espetáculo não se perde no caudal das letras porque consegue concentrar em uma invenção teatral própria o trajeto que nos mobiliza e comove: aquele em que nos é mostrado a mútua abordagem entre confissão e ficção. Os caminhos que vão de um testemunho sobre o que foi, sobre o que em grande medida continua sendo o Brasil, e de como isto se traduz nos termos de uma dolorosa – mas também libertadora – experiência íntima.   

Infância

Autor: Graciliano Ramos
Idealização e adaptação: Ney Piacentini
Concepção e direção: Ney Piacentini e Alexandre Rosa
Interpretação: Ney Piacentini (atuação) e Alexandre Rosa (músico)
Assistente de direção e iluminação: Elis Martins
Fotos e vídeos: João Maria Silva Jr.
Programação visual: Paulo Fávari.

SERVIÇO

Quando: de 06/03 a 26/04 de 2023
Segunda, Terça e Quarta às 20h30
Onde: SP Escola de Teatro – Sede Praça Roosevelt Praça Roosevelt, 210
Ingressos: 20 inteira / 10 meia-entrada (Preços populares)
Retirada via Sympla SP Escola de Teatro
Lotação: 60 lugares
Classificação indicativa: Livre

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