Por Kil Abreu
Um detalhe significativo na encenação de Red Line é o traçado feito no chão do palco com lâmpadas mimetizando neon. O espaço da ação é margeado por essas linhas, em perspectiva. Inscrevem retas paradoxais – de um horizonte aparentemente firme mas também incerto. É um recurso que remete tanto à visão de um trajeto, um caminho (qual?) quanto à denúncia do seu fundamento artificial, ilusório. O horizonte afirmado como coisa precária ao final da peça nos diz, como naquela canção, que algo se quebrou. Ou está se quebrando.
Na peça, a ação se passa quase toda no intervalo imaginado entre o fechar e o abrir de um farol. É algo cinematográfico, mas serve perfeitamente ao teatro e livra logo a montagem do realismo estrito. Cria possibilidades para o trânsito livre das narrativas que estouram sem aviso aqui e ali. Entre passagens dialogadas, planos de memória e fluxos de pensamento, a plateia testemunha uma coleção de pequenas e grandes violências.
Nesse esquema, a dramaturgia criada pelo diretor Biagio Pecorelli é bastante concentrada quanto à situação, mas razoavelmente retórica no uso do verbo. Se por um lado o que acontece tem balizas bem firmadas e visíveis, por outro o que se diz a respeito dos acontecimentos nos chega em um volume quase inalcançável. De qualquer maneira as criaturas que movem a história, Tom e Rose, seguem nessa dinâmica entre o apreendido e aquilo que escapa – ou é deliberadamente apagado. Dirigem para onde? Rumo a algo, a um lugar, a alguma coisa que permanece oculta até o final e a respeito da qual o diálogo vai dando pistas subliminares. Quando o sol se abre percebemos que quase sempre trata-se do desespero do macho frente ao seu desmanche. Mas trata-se também de outros temas amarrados a este. A mulher e o direito ao próprio corpo e subjetividade.
Há uma escolha curiosa do encenador, quando pede que duas atrizes interpretem Rose (Camila Rios, e Regina Maria Remencius )e um único ator (Rodrigo Sanches) se concentre em Tom. Ainda que a intenção seja a de centrar o foco na derrocada do personagem masculino, podemos perguntar se isso não acaba por valorizar, a contrapelo, aquilo que se critica. Escolhas formais não são pacíficas, e esta dá o que pensar.
A micropolítica, pautada assim, na discussão de gênero, é contrastada com o plano maior da sociabilidade. No entanto, por vezes a obra artística não fala a língua esperada pelo seu criador. Red Line talvez seja um exemplo. No espetáculo salvo engano não é a discussão de fundo sociológico o que nos oferece o melhor do teatro. O melhor está nos indícios poéticos. Ali onde se conta menos com um parecer militante e mais com um sincero – talvez involuntário – sentimento crítico a respeito da época. O tumulto da vida urbana, a fratura do sujeito e, sobretudo certa consciência melancólica da passagem (tema trágico por excelência) podem ser lidos mais fundamente nos momentos em que o fio que demarca a insatisfação existencial ganha o primeiro plano sem anunciar-se. Nem sempre eles estão no texto, às vezes estão já diretamente na cena. Está, por exemplo, nas linhas retrô da cenografia e seu desenho hoje já antigo, “raio-que-o-parta “. Está no prólogo vigoroso de Edson van Gogh afirmando gritos na guitarra, acompanhados pela headbanging que ele performa (e o próprio hard-rock é já música retrô). São gestos sem palavras através dos quais a insatisfação, o protesto e quem sabe a doçura de um mundo em desencanto estão presentes. Têm efeito porque nos parecem meio inexplicáveis e, entretanto, nos tocam.
Como neste espetáculo, o pessoal d’A Motosserra Perfumada vem ajudando a fazer os retratos político-afetivos da vida atual, através da cena. São dramaturgias frescas, desmedidas, em espetáculos nos quais o sentimento dos jovens estratos médios-baixos urbanos estão bem intuídos e representados. Trazem atitude e, no fundo do tacho, delicadeza. Coisas das quais o teatro gosta muito.
- Este texto participa do projeto Arquipélago, de fomento à crítica, conduzido pela produtora Corpo Rastreado. Nele estão ainda as casas: Ruína Acesa, Guia OFF, Horizonte da Cena, Tudo menos uma crítica, Farofa Crítica e Satisfeita, Yolanda?
Ficha Técnica
Texto e Direção: Biagio Pecorelli. Elenco: Camila Rios, Rodrigo Sanches e Regina Maria Remencius. Assistência De Direção: Giovanna Federzoni. Trilha Original: Edson Van Gogh e Anvil FX. Cenografia: Rafael Bicudo. Figurinos: Ana Luiza Fay. Desenho de Som: Dugg Mont. Desenho De Luz: Carol Soares e Jaque Nunes. Arte Do Cartaz: Bruno Caetano. Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli e Renato Fernandes. Produção: Corpo Rastreado e A Motosserra Perfumada.
Red Line – A Motosserra Perfumada
Temporada: De 7 a 30 e novembro de 2023. Terças, quartas e quintas, às 20h30.
Duração: 60 minutos.
Classificação etária: 18 anos.
Cemitério de Automóveis
Rua Francisca Miquelina, 155 – Bela Vista.