Lirismo, teatro e memória

Meu nome: Mamãe. Foto Renato Mangolin

Por Kil Abreu

 Meu nome: mamãe é um espetáculo que dá o que pensar. Mas o pensamento não chama nenhuma demanda aparente, o que já o coloca como trabalho de exceção no panorama da cena, hoje bastante pautada no debate – justo – sobre a política social e os dilemas da convivência em um país que segue rachado. Em lugar das marcações de posição, o trabalho de Aury Porto escolhe o relato das lembranças de um menino nascido no Sertão cearense, e passagens da história de sua velha mãe, tomada pela Doença de Alzheimer há muitos anos.

 A forma solo tende muitas vezes à vaidade, seja na exibição do talento de atuantes, seja por conta da tarefa que é levantar a representação sem interlocução direta na cena. Em Meu nome: mamãe o gosto pelos retratos íntimos não cai no ensimesmamento.  O que se vê são procedimentos que abraçam o estado contemplativo e levam o público junto, sem buscar efeitos. Não teremos o ator mimetizando personagens, por “reais” que sejam. O espetáculo é, por escolha deliberada, menos que uma fábula e mais que uma performance diante da história familiar. E o que se contempla, então, é uma narrativa honesta nos fatos e terna na forma.

A esta ‘simplicidade’ correspondem, entretanto,  algumas condições. A mais evidente salvo engano é a procura dos criadores pelos meios de linguagem que possam gerar interesse em um texto dessa natureza. Ou, em outros termos, de que maneira a teatralidade se instala, nessas circunstâncias. A resposta do palco é feliz. Na montagem as tensões surgem por dentro. O conflito, no sentido dramático tradicional do encontro de subjetividades em desacordo, é reposto não como embate, mas como um tipo de dramaticidade que nos parece quase natural aos acontecimentos. Por exemplo, a descrição da cena de um pai tentando salvar os animais da família em meio à enxurrada. Dali se pode imaginar, além da agonia da situação, o impasse ético. Lá está a morte, a necessidade de decidir diante de uma situação limite. Que o ator alcance este impasse, intensificando-o sem apelo imediato ao sentimento da plateia, nos diz sobre o quanto ele aprofunda este duplo: um teatro quase nu, enxuto quanto aos meios materiais, e a olhada vertical no precipício. Olhar para a nossa história sempre tem algo de alegria, vertigem e precipício, podemos sentir.  

O ator Aury Porto em cena. Foto: Ricardo Mangolin

 Aury Porto tem em cena uma presença franca. Nos conta sobre sua mãe como quem sonha um sonho sem sustos. Se o aceitarmos, passamos a existir com ele porque existir na cena junto com ele torna-se inescapável. De alguma maneira aquela história nos diz respeito. Senão no aspecto pontual da doença, ao menos naquilo que esta doença suscita em nós.  Então o espetáculo existe mais fundamente quanto mais os impasses que estão subliminares puderem ser lidos e quanto mais nos permitirmos pensar nas questões  que ele nos lança, desassombradamente. Como perguntou em outro contexto o compositor baiano, existir, a que se destina? Não  é apenas um dilema dramático, é uma pergunta já no terreno do trágico. Senão a tragédia, ao menos o sentimento trágico está na relação entre a consciência do que somos, a ambição sobre o que queremos ser e o insondável daquilo que foge, que acaba, que morre, e que nos inquieta.  É uma leitura.

Sociabilidade

A reunião de artistas dedicados à pesquisa não garante o êxito de nenhuma obra. Mas aqui é razoável supor que os repertórios próprios de Aury Porto, da dramaturga Claudia Barral e da diretora Janaína Leite encontraram irmandade. É uma cena justa nos seus meios expressivos. Há o rico material do ator e o desejo de apresentar a sua audição singular para a doença da mãe.

Há a presença de Claudia Barral, que além de dramaturga é uma poeta. Faz diferença a delicadeza com que ela arquiteta um relato que tende ao lirismo, e o pedido que vem das tábuas.

Há a diretora Janaína Leite, que entra no projeto em momento já maduro da sua pesquisa em torno das autoescrituras cênicas, o que oferece um suporte aqui muito favorável à encenação.

Se olharmos um pouco por fora, há uma dimensão importante e muito bonita no espetáculo, que renderia um outro texto: a maneira como o relato a respeito daquela família sertaneja é cosido com os fios da memória social. Ou seja, aquelas memórias também dizem respeito a uma sociabilidade partilhada. A escolha das situações e imagens, o olhar sobre a paisagem humana que elas comportam e, sobretudo, a ternura bem humorada com que o ator descreve sua mãe e os seus, dizem muito. Dizem sobre lugares que para as pessoas migrantes representam algo indissociável do nosso lembrar, de nós, em nós.

*CENA ABERTA faz parte do projeto Arquipélago de fomento à crítica, apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes : Ruína Acesa, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Agora Teatro, Tudo menos uma crítica e Satisfeita,  Yolanda?  

MEU NOME: MAMÃE

Até 29 de Julho, 20h.

Ágora Teatro – Rua Rui Barbosa,664 – Bela Vista, São Paulo.

55 minutos | 14 anos

Ficha técnica:

Idealização, Texto e Atuação – Aury Porto. Direção – Janaina Leite. Dramaturgia – Claudia Barral. Cenário e Figurino – Flora Belotti. Trilha Sonora e Operação de Som – DiPa (Rodolfo Dias Paes). Desenho e Operação de Luz – Ricardo Morañez. Preparação Corporal – Lu Favoreto. Projeções – Felipe Ghirello. Gestão de Projeto – Metro Gestão Cultural. Direção de Produção – Carla Estefan. Produção Executiva – Bia Fonseca. Fotos – Jennifer Glass e Renato Mangolin.

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