por Nadja Naira
– Especial para o Cena Aberta –
Vejo uma imagem projetada numa tela de superfície estilhaçada, recortada. Uma transmissão ao vivo de uma imagem que eu sei que está reproduzindo uma outra imagem que está logo atrás dessa tela-superfície cortada, rasgada, em fatias. Detrás dessa superfície tem um corpo estilhaçado, cheio de cicatrizes. Esse corpo fala comigo, me olha através de uma câmera, através de uma lente, através de um microfone, sua imagem me chega filtrada, mediada, essa voz me chega manipulada, amplificada, distorcida e não entendo todas as palavras. Me esforço pra entender: é um chiado é um sussurro é uma ordem é um pedido é uma instrução. Não sei exatamente. Me esforço pra entender o que aquele corpo me diz, ele está de costas pra mim, mas vejo a frente desse corpo, o seu rosto. A boca que se mexe, os olhos que me olham e sobre esse rosto tem filtro virtual tipo rede social pop e ordinário, tem máscara tinta maquiagem bem feita e cara, tem outro filtro sonoro os sintetizadores e amplificadores, tem máscara plástico nylon tramado. E apesar de já saber de quem é esse rosto — é a Leo! — procuro pistas, procuro saber quem é que quer me olhar, quem quer falar comigo. Esse corpo se esconde, se revela, esse corpo quer ser visto e me seduz adiando a revelação. Talvez tenha tantas cicatrizes que já não é possível ver esse corpo como ele é, só é possível ficcionar esse corpo. E o tempo de duração dessa situação me faz pensar nas horas perdidas frente uma pequena tela de celular nas redes sociais cheias de vaidades e imagens fúteis de rostos felizes, as máscaras contemporâneas da visibilidade forjada em números de likes.
Aos poucos consigo acessar a imagem desse corpo, quando ele se mostra na cena no palco no teatro e ufa!, já com menos filtros, já sem a câmera, só um corpo em cena sob uma luz dramática. Vejo esse corpo! Quanto mistério e beleza! Definitivamente é a Leo. Esse corpo não é qualquer corpo. ESSE CORPO está assim completamente coberto, esse corpo está mediado por um figurino, por uma máscara que deforma esse rosto, por uma peruca, por uma maquiagem, por um cabelo pintado. ESSE CORPO VIVO está transformado, está mexido, foi modificado, tecnologicamente modificado, corpo ciborgue, corpo do futuro, corpo presente nesse futuro de agora. E quando esse corpo se aproxima, vem em minha direção e se revela, me olha então sem filtros, pele que se descama, sob a pele camadas, sobreposições, músculos múltiplos, ossos facetados, organismo cheio de arestas. ESSE CORPO BRUTO.
Não, não é um corpo disforme. É um corpo cheio de formas e as formas desse corpo me interessam, as formas desse corpo me fazem pensar nas outras formas de outros corpos. Esse corpo um pouco boneca, um pouco gente, um pouco dureza, um pouco malemolência. Vejo uma estrutura, um exoesqueleto que está por fora desse corpo, uma arquitetura, uma construção. Penso sempre no esqueleto, nos ossos internos. Vejo joelhos, cotovelos, colunas e pilares, ossos externos, vejo camadas de proteção, de estruturas, de figurino, de roupa que vazada me permite ver lá por dentro onde há mais uma estrutura, mais uma camada, mais um osso que sustenta esse corpo, mais um músculo forte que faz com que esse corpo consiga permanecer de pé na minha frente tentando se revelar e se esconder.
O espaço ao redor também se revela muito cru, muito bruto e vejo todos os truques. Ela tem um microfone na sua frente, ela discursa, ela canta, ela se desmonta na minha frente, na frente de todos, em teatro público, o seu divã. A cena crua, a sala do teatro, a arquitetura monumental na praça, a cidade gelada, o país em ruínas. Todos cheios de máscaras, nebulosos, escondem seus truques. Não são truques. É uma performance. Aqui não há truque. Aqui há Leo. Não é um truque. Ou se é um truque, o truque é revelado, é pra ser visto, é declarado com todas as letras em palavras, frases, discursos. Como esse corpo trans, essa mulher trans que se revela na minha frente pra ser vista, que quer ser vista como ela é e não sua sombra escondida na névoa. Ela quer estar no centro. Ela quer ser protagonista. Ela quer cantar uma ópera diva de show de rock pop Coachella. Ela quer poetizar, parnasiana, em poema concreto, em rap trap tropical. Ela quer dizer. Ela diz. Ela não QUER dizer. Ela é. Ela está no centro, ela é protagonista. Ela diz. O que ela diz? Consigo escutar? Ela não quer significar. Ela não quer representar. Leo é. Ela é muitos outros corpos, ela é um desconforto, ela é uma quina, uma aresta, uma ponta de espinho. Ela não quer ser acomodação resolução superfície mole. Ela quer ser descompasso, descontrole. Trava do sistema. Que destrava algo em mim. Meu corpo de mulher me engana, com certeza. Meu corpo me trai em desejo e repulsa. Repulsa, sim, de mim mesma, da minha criação cultural violenta e excludente. Travo. Consigo escutar o que esse outro corpo de mulher me mostra? O que ela diz? Leo diz. Ela diz. Ela assume o seu próprio lugar, seu muro. O seu discurso-palestra-espetáculo é biográfico, sim, como sua forma dramatúrgica, e busca destravar a minha possibilidade de fuga num mergulho para uma suposta ficção reconfortante. Mas não quero fugir. Ela trava minha mente, que procura na novela barata uma saída, uma desculpa, uma acomodação. Ela trava o meu sistema, que procura na arte um padrão de comportamento, de entretenimento, de limpeza asséptica, de compreensão colonizada, de beleza pré-concebida, suave e geometricamente sintonizada. Ela trava o meu sistema e, travando o meu sistema, ela quer me destravar. E então ela é bruta. Quando me/se expõe, quando se/me expõe, me expõe se expõe quando provoca um desbocamento uma profanação um silogismo uma oração. Esse corpo-palestra, esse corpo-dança, corpo-canto, corpo-sagrado, corpoartista corpopensamento corpoamorcorpocrítica.
Sentada numa cadeira giratória ela nos concede uma entrevista em roda viva. Ela se autocritica. Ela se olha do passado nesse futuro-presente e modifica agora algo acontecido lá atrás, no passado. Ela se vê, mediada. Leo vê Leo. Ela vê a sua própria apresentação. Ela vê a sua própria performance. Ela se critica, ela se diz, diz pra ela mesma, aquela lá do passado diz, como construir esse hoje-futuro. Ela se manipula. Ela se dirige. Ela opina. Ela se orienta a não suavizar a bruteza. Ela se mostra pra não ceder à doçura. Ela se ironiza, ela pode, só ela pode, só ela. Ela se olha através das lentes dos seus óculos, dos seus olhos pintados, através das telas dos computadores, através das lentes das câmeras que registram o seu corpo e dos filtros que ela utilizou para manipular sua voz, sua imagem. Ela se mostra e se vê. Ela, Narcisa, ecoa. Ela se coloca de ponta cabeça, se coloca do avesso. O avesso que é constituinte do corpo dela. A cicatriz que é constituinte da realidade diária dela. Ela está de ponta cabeça. Leo é do avesso. Ela olha pra si na duração do tempo, ela se olha no tempo, no tempo pra trás, mas ela não é saudosista ou quer mostrar trajetória de glórias ou fracassos. Ela se olha no tempo para a frente. Ela não quer dizer nada, ela diz, ela é.
A bunda pode ser enchimento, o peito também pode ser enchimento. Enchimento de hormônio, o peito físico, as tetas. Mas o peito caixa de ossos que contém um coração não é fake, não é enchimento, não é o farmacoquímica. O coração que está dentro deste peito, protegido neste esqueleto, dentro deste endoesqueleto, este coração músculo, está lá todo dia e acompanha este corpo há anos, sempre esteve lá e não tem sexo e não tem tendência religiosa e não tem governo fascista não tem crítica rasa. Este coração que bate lá tem cor, é vermelho, como a cor que ela escolhe botar na cena, botar num lábio, na unha, no vestido, no cabelo. Coração vermelho este que pulsa, que pulsa através deste músculo que pulsa dentro dela este peito, neste peito onde está este coração, este peito é feito de cicatriz, de dor, este peito é couraça é casulo é caramujo peito-bruto, mas neste peito bruto mora todo o amor e toda delicadeza com que ela nos mostra a possibilidade de existência num tempo presente e futuro. Ela só vê a possibilidade de estar no futuro. Que bom que este peito se abre e tem força, fôlego, coragem de se doar, de se mostrar, de se expor. Que bom que é amoroso este peito que aceita flechas e todos os abraços, esse peito que quer ser desejado, invadido, habitado, amado, compartilhado. A bunda pode ser enchimento, a unha pode ser gel, pode ser postiça, o cabelo pode ser pintado, os pelos depilados, as formas construídas em academias ou com hormônios. Mas dentro do peito tem algo que não pode ser manipulado, tem um sentimento, essa certeza de existir, de ser. De ser o que ela é, o que ela quer ser, onde ela quer ser. Que bom encontrar debaixo de tantas camadas e de tantas cicatrizes algo bruto. Que se revela. Que bom. Que bom que esse coração não é pedra. Que bom que esse coração também é faca também é estilete rosa-espinho tesoura e animal doméstico. Que bom que ela está viva e pode sonhar. Simples assim.
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Nadja Naira trabalha desde 1990 em teatro, como iluminadora, diretora, dramaturga e atriz e já participou de mais de 250 peças. Mora em Curitiba, Paraná, mas mantém parcerias artísticas em todo o país. Tem 13 criações premiadas e outras 22 indicações a prêmios. Trabalha com diretores e grupos de teatro como Marcio Abreu, Grace Passô, Grupo Galpão (Belo Horizonte), A Armadilha Cia de Teatro, Companhia Ilimitada e Teatro de Breque (Curitiba). Colabora também com companhias de dança e performance, e com diversos grupos de música. Integra a companhia brasileira de teatro, que tem sede em Curitiba desde 2002, tendo participado de todas as suas produções (Minibio informada pela autora).
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Serviço:
Dia 8 de junho às 21 horas e dia 9 de junho às 17 horas no Teatro João Caetano, dentro da programação MITbr – Plataforma Brasil, da MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.
Ficha Técnica:
Criação, texto e interpretação: Leonarda Glück;
Direção: Gustavo Bitencourt;
Direção de produção: Igor Augustho;
Trilha original: Jo Mistinguett;
Luz: Wagner Antônio;
Assistente de iluminação: Dimitri Luppi;
Criação em vídeo e projeções: Ricardo Kenji;
Figurino: Fabianna Pescara e Renata Skrobot;
Fotografias: Alessandra Haro;
Realização e produção: Pomeiro Gestão Cultural.