Farofa (2) – A experiência do processo

Favela de barro, com o grupo Esquadrilha Marginália. Foto: Ligia Jardim

Por Kil Abreu

A Farofa, mostra-movimento promovida pela produtora Corpo Rastreado, gira fundamentalmente em torno de processos de criação. São nove edições do evento que nasceu justaposto à MITsp – Mostra internacional de teatro de São Paulo – e ganhou, segundo seus realizadores, função e perspectiva próprias. A Mostra aconteceu entre 02 e 10 de Março/2024, na Oficina Cultural Oswald de Andrade, na Casa do Povo e no Teatro de Contêiner, da Cia. Mungunzá. Em dias intensos de mergulho no teatro experimental, quem acompanhou a programação viveu não apenas a assistência da cena. Acabou por ser envolvido por modos de sociabilidade hoje já inusuais proporcionados a partir do teatro, da dança, da performance.

Nos festivais de teatro, por melhores que sejam, já não há tempo para comportar encontros que não estejam diretamente ligados à produtividade. Talvez por isso entre outras coisas o charme e a qualidade social da Farofa esteja no sentido da re-união de artistas e público de um jeito menos protocolar. A começar pelos espaços em que os encontros acontecem. Acolhedores como uma grande casa de família, como o pátio interno da Oswald, onde pudemos usufruir do direito de almoçar em comunidade e sob luz natural. Como disseram os situacionistas, em uma sociedade na qual a necessidade de produzir atropela o prazer de criar, poder respirar e comer em coletivo faz diferença.     

Inspirado nesta forma (é uma forma) e nesse espírito, vamos aqui desfiar algumas impressões a respeito da natureza laboratorial do encontro e nesta maneira singular com que foi tecido o seu entorno. No artigo seguinte faremos a discussão dos  trabalhos.

Propomos então as ideias de experiência e de processo para uma primeira tentativa de considerar o texto (obras) e seus contextos (circunstâncias).

Experiência, ciência, arte

Uma experiência, no sentido científico da palavra, comporta ao menos dois termos: o sujeito que experimenta e o objeto que é experimentado. Em termos rigorosamente científicos o conhecimento gerado na experiência existe para provar ou para testar algo – uma hipótese -, de uma maneira em que sujeito e objeto não se misturam, a não ser em casos excepcionais. 

Em arte o sentido da experiência é bem mais ampliado. De todo modo, assim como na ciência o experimento se faz por uma ordem permanente de “ensaios”, esta palavra tão cara aos artistas de teatro.

Em um famoso artigo do início do século XX, Walter Benjamin chamava a atenção para a experiência como discurso de poder. A experiência, no sentido do acúmulo de saberes, é sempre um instrumento de poder. No limite, de subjugação. Sobre isso, já alertara Plínio Marcos: “cuidado com o papo dos velhos; geralmente, o que dizem é para justificar a vida miserável que viveram”.

Uma Mostra de processos criativos como a Farofa talvez seja o lugar ideal para perceber que no teatro esse poder não tem muitas chances de absolutizar-se. O experimento tende a descentrar permanentemente o poder, a escapar dele. A cena está em mutação, não se deixa domesticar.  A parte mais interessante é que isso não significa que nela, a cena nascente, a experiência não tenha lastro algum de saber instituído. É fácil notar que não. Estratégias de formalização e de pensamento já amparadas nas tradições estarão certamente lá – às vezes mais, às vezes menos aproveitadas. Mas há de todo modo um saber que não está dado.  Que está sendo  descoberto em uma arqueologia tanto material quanto afetiva. No quente da prática artística.

Jéssica Teixeira em Monga. Foto: Camila Rios

Olhar para estas incubadeiras ferozes onde as coisas estão se tramando é como testemunhar a invenção no momento mesmo em que a linguagem é posta a tatear sentidos. Como sabemos, nem tudo é epifania. Porque uma experiência assim pensada ergue-se também ao sabor do erro necessário, da marca equivocada, do gesto inacabado, da trilha ainda inapropriada. Mas esta é a sua condição, o experimento só existe porque a possibilidade do desacerto está presente. Olhar um processo seria, portanto, olhar uma paisagem sui-gêneris em que formas próprias de natureza e de jogo nos parecem por vezes surpreendentes e reveladoras, e outras nem tanto. Diferentes estados, afetações e resultados são, por assim dizer, a condição ética da experiência, tanto quanto do olhar que tenta assimilá-la.

            O que chamamos experimento tende assim a um tipo de abertura fugidia sem a qual o mais vivo e mais importante do laboratório se perde. Este movimento é o próprio ato de elaboração tanto das dimensões materiais e estritamente formais quanto da elaboração estético-política daquilo que se articula.

            Desta abertura, que é maior ou menor a depender da obra em processo salta uma infinidade de demandas muito boas. Boas porque nos chamam a pensar. Por exemplo, a extensão da experiência no espectador. Não parece óbvio que neste esquema a fruição seja ela mesma chamada para apresentar-se em processo? No mundo da estetização literal da vida, do apequenamento da alegoria, da estreiteza simbólica da política, a tendência da mercadoria é entregar a experiência pronta e embalada sempre que for possível, e não criar zonas em que a leitura passe a ter um percurso incerto.

Então, uma Mostra de experimentos  é também um desafio para o olhar de quem testemunha os artistas na sua peleja com a linguagem e com as condições de produção dadas. Um desafio na contramão dos modos de recepção reinantes. E, por que não dizer, ao ser desafiado o espectador passa a ser não só testemunha da experiência artística, passa a ser testemunha de si mesmo. É arrolado em um jogo de proposições que em tese o tira da passividade, pede dele, dela, participação intelectual e sensível.

Como sabemos, nada é automático. Certamente haverá muitos gestos e arranjos laboratoriais que não movimentam nada, que paradoxalmente aprisionam a fruição no ensimesmamento. Ou que apresentam-se como poética “aberta” mas resultam em fechamento autoritário.  No entanto, a depender da qualidade da provocação o espectador pode ser estimulado a vivências singulares – o que pode incluir desde o prazer ou desprazer sensorial até a tomada de posição política diante dos impasses da época. Quanto a isso, no contexto do que se chamou “estética da recepção” ainda há uma nota importante, por elementar que seja: a leitura da obra de arte é construída não só pelo que vem do objeto observado, mas também por todo o repertório visual, moral, valorativo, vivencial, que já está no sujeito. Como em qualquer processo pedagógico, o espectador não é uma página em branco, traz para a experiência a sua história própria.

Coletivo Legítima defesa: Exílio – notas de mal-estar que não passa. Foto Camila Rios

Luzes na Farofa

            Em grande medida o que chamamos de processo e de “a experiência do processo” que a Farofa apresentou através da programação, tem em seu centro estas questões, traduzidas em uma disputa acirrada de valores. Na frente estética, strictu sensu, pensemos – são só alguns exemplos – em trabalhos como os do Coletivo 28 patas furiosas (Um Jaguar por noite); do Karma Coletivo (Sou ave que carrega coisas que têm brilho para o seu ninho), e seus delicados, radicais mergulhos na linguagem, suas cifras abertas ao onirismo, músicas que continuam ressoando em nós ao final das apresentações. Em outra frente pensemos em grupos e artistas como Marina Esteves (Magnólia), Coletivo Legítima Defesa (Exílio), Coletivo Ocutá (O avesso da pele), usando seus laboratórios para afiar as facas que demarcam o chão da sociabilidade. Escrevem cenicamente suas palavras de contestação ao imaginário escravocrata que perdura e, por outro lado, sustentam a afirmação vital das forças políticas emergentes, ali animadas em fortes batidas e discursos cortantes a lanhar a cena.

Não distantes destes, pensemos nos artistas de Cubatão, o Esquadrilha Marginália (Favela de barro); no pessoal da Cia. Mungunzá (Cena Ouro) e seu enclave humanista no meio da ‘Cracolândia’ paulistana. De como neles e nelas a deliberada precariedade material transmuda-se do lugar de tema ao lugar de investigação estética, a denunciar sem mediações a vida nas franjas de um dos países mais desiguais do mundo. Em outra direção, olhemos o convite de proposições tão distintas como a de Carlos Canhameiro e sua grande trupe, a revisitar a radicalidade romântica e juvenil de Álvares de Azevedo como teste para o vislumbre do incerto horizonte brasileiro. Justaposto a estes, percebamos o contraste feito na voz solo e na cena mínima, no osso, de Pedro Vilela, a mostrar este mesmo Brasil no presente, no paroxismo do horror. Ou ainda na aventura artística e pessoal de Jéssica Teixeira, que fabula a existência a partir do próprio corpo e de questões intransferíveis, mas também de questões comuns à condição da mulher.

            Todos estes recortes são disputas. A maior parte delas esteve, no ambiente da Mostra, em pleno movimento construtivo, com suas estratégias formais em testes, defesas, recusas, atmosferas, arroubos, silêncios, histórias e não-histórias. Com as sintaxes e semânticas que levantam experiências próprias, enfim.

            No próximo texto vamos propor, então, algumas relações possíveis entre os trabalhos assistidos, partindo deste pressuposto, o da experiência do processo.

            Para um relato sobre o projeto Farof(f)a e sobre esta edição do evento, leia também a entrevista com a produtora Gabi Gonçalves:. https://shre.ink/8061.

Este texto é parte do projeto Arquipélago de fomento à crítica, apoiado pela produtora Corpo Rastreado (promotora da Farofa). Compõem o projeto os sites, blogs e revistas: Guia OFF, Tudo Menos Uma Crítica, ruína acesa, Satisfeita, Yolanda?, Horizonte da Cena, Farofa Crítica e Agora Crítica.

Farofa do Processo

Aconteceu de  2 a 10 de março de 2024, com ingressos  gratuitos e  atividades das 10h às 22h

Programação completa em: https://www.faroffa.com.br/

Locais:

Oficina Cultural Oswald de Andrade – Rua Três Rios, 363, Bom Retiro, São Paulo, SP

Casa do Povo – Rua Três Rios, 252 – 1º andar, Bom Retiro, São Paulo, SP

Teatro de Contêiner – Rua dos Gusmões, 43, Santa Ifigênia, São Paulo, SP

FICHA TÉCNICA – Farofa/Corpo Rastreado

Produtores e produtoras: Alba Roque, Anderson Vieira, Angelo Fabio, Ariane Cuminale, Carmen Mawu Lima, Danusa Carvalho, Felipe Feldman, Fernando Pivotto, Gabi Gonçalves, Gabs Ambròzia, Gisely Alves, Graciane Diniz, Jack dos Santos, Jacob Alves, Jéssica Rodrigues, Keila Maschio, Leo Devitto, Letícia Alves, Lucas Cardoso, Lud Picosque, Nathalia Christine, Rodrigo Fidelis, Tamara Andrade, Tatah Cardozo e Vinicius Inacio.

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