Parto Pavilhão celebra o renascimento da fala

Aysha Nascimento em Parto Pavilhão: narrativa social
Foto: Noelia Nájera

Por Kil Abreu

O tema da ancestralidade tem se mostrado caro aos artistas que levantam neste momento as cenas negras, Brasis afora. A gente pode mesmo dizer que além da grande recorrência, tornou-se uma espécie de tema-dispositivo, em que o princípio de reconhecimento do passado cultural à diáspora afro-atlântica é indispensável à ação política hoje, e também à nervatura da experiência estética.

Na peça Ialodês, de Dione Carlos, há uma nota que diz: “toda mãe é uma arca negra”[1]. Além da inspiração poética que vem nesta sentença, podemos intuir que a autora de “Cárcere – ou porque as mulheres viram búfalos” apresenta, em chave lírica, o corpo feminino e a maternidade como arquétipos do que se tem chamado de memória ancestral.

Esta moldura responde perfeitamente a Parto Pavilhão, espetáculo que cumpre temporada no Sesc Pompéia. A peça é uma narrativa inspirada na fuga de um grupo de detentas, com seus bebês ao colo, do Centro de Progressão Penitenciária do Butantan (São Paulo), em 2009.

A versão teatral escrita por Jhonny Salaberg e encenada por Naruna Costa é, pode-se dizer, uma narrativa francamente esperançosa. Parte da figura materna para reclamar de um beco social aparentemente sem saída mas, olhando além, também para imaginar horizontes em uma sociabilidade marcada pela desigualdade e pelo racismo. 

Rose é a narradora vivida em cena por Aysha Nascimento. É uma espécie de liderança afetiva entre as prisioneiras. Ela mesma já fora mãe dentro da cadeia. Entre entradas e saídas das celas, a vigilância dos berços, saudades, ódios variados e pontos de tricô, é quem ampara as mulheres, as crianças, e faz o trânsito entre as encarceradas e a direção do lugar. É uma “considerada” pela diretora que, naturalmente, a explora. Rose a tolera pacientemente pensando no molho de chaves que adiante abrirá a história para o salto. Uma microfísica do poder que envolve a contingência violenta dos desamparados e a busca de soluções arquitetadas intimamente. A inteligência paciente que no limite estoura em desobediência civil.

Sociologia, dramaturgia

             No primeiro plano do que se conta na peça o que vemos é a proeminência da maternidade e do corpo negro feminino como arenas das dissonâncias sociais, nas formas como aparecem enraizadas no presente. É então uma visada que recoloca aquele assunto da ancestralidade em termos mais prontamente históricos. E, na trama, projeta lugar de classe e questões de raça no mesmo movimento, sem que no entanto nenhuma dessas frentes seja apresentada como objeto imediato do discurso. Ou seja, não há prioridade à apresentação objetiva de demandas – a condição da pessoa negra, a pobreza, a violência do sistema carcerário. São questões que estão lá, mas têm que ser intuídas sobretudo a partir das ações ordinárias que a peça conta.

Sem demérito a uma dramaturgia de discurso sociológico mais direto, esta talvez já seja uma característica importante na obra de Salaberg. Representa uma estratégia ainda pouco assimilada pela cena militante atual.  No contexto de uma militância que não sem razão tem iluminado a posição antirracista, trata-se de uma literatura dramática também preocupada por fazê-lo promovendo o reconhecimento das vozes íntimas e das subjetividades que foram historicamente silenciadas. É então uma peça que trabalha neste espaço de afirmação das causas, mas através do sujeito. Renovados renascimentos da fala.

Dramaturgia e encenação: organicidade
Foto: Noelia Nájera

O release do espetáculo nos lembra que Parto Pavilhão é a terceira das três peças que compõem a “Trilogia da Fuga”. Informa-se também que as obras são orientadas pela ideia de “leveza” indicada por Ítalo Calvino nas suas “Seis propostas para o próximo milênio”. Entende-se daí que em um texto como “Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã”, e este atual, Salaberg buscou caminhos outros em que os problemas sociais são tratados em estruturas dramáticas não reiterativas do medo e não reféns das chagas que derivam deles. É uma ótima proposta, que poderia no entanto cair facilmente na busca por efeitos de suavização dos conflitos, em nome de uma solução estritamente estética. Felizmente até aqui a melhor notícia vinda dessa aventura do autor é que ele jamais esquece que tem lado, e isso está impresso nos procedimentos artísticos eleitos por ele. Por exemplo, o uso da função narrativa, que é agregadora; e sobretudo o imaginário que faz do tema da fuga, nestes textos, não uma jornada heroica que se basta como emblema de resistência, mas que além disso força de um modo próprio a abertura de perspectivas. Quando o dramaturgo diz “realismo mágico” certamente não é apenas para responder a Calvino ou ao formalismo de um gênero, mas para recolocar os dilemas sociais a respirar em novos ambientes de invenção que possam iluminar a vida comum.

Artesanato e assimetrias pátrias

            O espetáculo é narrado magistralmente por Aysha Nascimento. Aysha tira tudo o que pode do trânsito veloz oferecido pela narrativa. Personifica quando é necessário, distancia-se das situações contadas para dar maior entrada à imaginação do público, quando é oportuno. Vive intensamente, mas com as medidas sempre ajustadas, tanto as personagens quanto a crítica a elas. Neste papel (papéis) é como aquelas atrizes nos oferecendo algo que a partir dali nos parece pouco provável de ser vivido por outra. É um grande trabalho.

            Ela é acompanhada pela assistência luxuosa do pandeiro de Rebeca Gomes (ReBlack), com direção musical de Giovani Di Ganzá . Uma voz-violoncelo que faz a contracena criando outra pista para assonâncias, comentários e diálogos sonoros da melhor qualidade.

   Não é possível dissociar a encenação pensada por Naruna Costa sem apontar que a sua vocação como diretora encontra parceria à altura na dramaturgia de Jhonny Salaberg. A assertividade deste encontro já podia ser notada no ótimo “Buraquinhos…”, e aqui se repete. Embora cada montagem tenha o seu campo simbólico próprio, é evidente o gosto de Naruna por explorar o texto do autor com paciência de artesã, inventando uma geografia de cena capaz de dar conta das inúmeras perspectivas – factuais, emotivas, políticas – que não são fáceis de totalizar teatralmente. No caso de Parto Pavilhão, o contorno das assimetrias pátrias que o espetáculo desenha é valorizado pela cenografia (Carol Gracindo ) e pela iluminação (Gabriele Souza, com operação de Beatriz Nauali). Uma rede de trave de futebol faz as vezes do xadrez de cela. Os balões/sacos pendurados em diferentes alturas e o módulo multifuncional que indica banco, prisão e variantes, performam uma instalação cênica que entrega possibilidades de leitura sem perder de vista as simbologias inspiradas no jogo de futebol.

Nesse sentido, o fato de o ponto de mudança da história das detentas coincidir com a final da Copa do Mundo de 1994 é algo significativo. Como disse com propriedade a escritora Juliana Borges na apresentação da peça, “não existe vitória sem liberdade”. Na encenação, o drible é representado como um lance dramático a avançar sobre a mentira do fatalismo. Na vida assim como num jogo de bola nada está dado, nada é natural. Assim como no futebol, trata-se de arrumar um plano tático a partir da engenharia dos corpos e das ideias. Nessas bases, o espetáculo talvez possa ser visto também como a proclamação de uma imaginada razão justa e do sentimento de vitória contra as formas de subalternização do humano.

  • CENA ABERTA faz parte do projeto Arquipélago de fomento à crítica, apoiado pela produtora Corpo Rastreado, junto às seguintes casas : Ruína Acesa, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Agora Crítica, Tudo menos uma crítica e Satisfeita,  Yolanda?

Parto Pavilhão

Temporada de 17 de Setembro a 18 de Outubro

Terça à Sexta, sempre às 20h30 | 60 minutos | 14 anos

Sesc Pompeia – R. Clélia, 93 – Pompeia

Telefone: (11) 3871-7700

https://www.sescsp.org.br/programacao/parto-pavilhao-3/

Ações formativas

28/9 (18h às 21h) – Lançamento do livro “Parto Pavilhão” de Jhonny Salaberg + bate papo com a advogada, Dina Alves, e a pesquisadora Jessica Nascimento

02/10 (14h às 18h) – Oficina de Teatro “Parir Imaginários” com Aysha Nascimento

16/10 (14h às 18h) – Oficina de Dramaturgia “A escrita entre o voo e o abismo” com Jhonny Salaberg

FICHA TÉCNICA

Idealização e Dramaturgia: Jhonny Salaberg

Direção: Naruna Costa

Atuação: Aysha Nascimento

Musicista em cena: Reblack

Direção musical e Composições: Giovani Di Ganzá

Preparação corporal e coreografia: Malu Avelar

Cenografia e Figurino: Ouroboros Produções Artísticas – Carolina Gracindo, Thais Dias e Iolanda Costa

Desenho e operação de luz: Gabriele Souza

Sonoplastia e operação de som: Tomé de Souza

Identidade visual: Sato do Brasil

Fotos: Jagun Filmes e Noelia Nájera

Assessoria de Imprensa: Rafael Ferro e Pedro Madeira

Produção: Washington Gabriel e Corpo Rastreado


[1] Citado por Carol Ewaci em “Corporalidades negras além da cena: em busca da saúde física e mental das mulheres negras periféricas”, no livro Negras insurgências – teatros e dramaturgias negras em São Paulo: perspectivas históricas, teóricas e práticas, das Capulanas Cia. de Arte Negra e Salloma Salomão (org), edição das autoras.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *