A utopia que nasce do feio

“Nós somos as abelhas do invisível” – Rainer Maria Rilke

Por Rodrigo Nascimento (texto incialmente publicado na Revista Cartografias da 7ª Mostra Internacional de Teatro.)

Cena do espetáculo Farm Fatale, de Philippe Quesne . Foto: Guto Muniz.

A criação de comunidades em miniatura. A transformação da cena em um viveiro no qual o ser humano é investigado do mesmo modo que insetos são analisados em um microambiente por um pesquisador. Em uma palavra, o teatro como meio para explorar um “microcosmo.”  Esses são alguns dos principais vetores das performances e encenações de Philippe Quesne (Les Lilas, 1970), dramaturgo, encenador e cenógrafo francês, desde que fundou o Vivarium Studio, em Paris, em 2003. Não só o próprio nome do Studio o sugere (“vivarium” em inglês significa “viveiro”), mas seus espetáculos são instalações que parecem reconstituir ambientes naturais, pondo em contato seres humanos e outros seres e chamando a atenção pela exuberância e plasticidade.

O encenador, que em 2014 foi nomeado chefe do Théâtre des Amandiers, um dos mais emblemáticos centros teatrais da França, estudou artes plásticas, design e cenografia em Paris e trabalhou como cenógrafo para inúmeros teatros e óperas. Em seu Studio, que reúne profissionais de várias áreas, é priorizada a investigação das relações entre o espaço, os objetos e os corpos. Mas se de início essa disposição parece sugerir um trabalho de veio naturalista, focado em apresentar um ambiente com todos os detalhes e determinantes materiais que agem sobre a espécie humana, o que a busca pelo minúsculo nas instalações performáticas de Quesne sugere, na verdade, são mundos surpreendentes, em que diferentes seres coexistem e cujas imagens se assemelham às ilustrações de um livro infantil.  Envoltos em uma atmosfera de sonho, tais mundos são a um só tempo realistas e fantásticos.

Numa zona limítrofe entre as artes plásticas, o cinema e o teatro, suas performances e encenações, na mesma medida em que arrebatam e encantam, perturbam pela estranheza. Situações em ambientes ora isolados, ora abandonados, como uma ilha deserta, um pântano, uma caverna escura, uma fazenda deixada para trás por seus antigos donos…. Contudo, desses lugares ermos e estranhos emergem figuras tão melancólicas quanto cômicas, tão fantasmagóricas quanto encantadoras, tão bizarras quanto humanamente próximas.

Foi assim com “Swamp Club” (2014), performance que apresentava um pântano tomado pela névoa e habitado por criaturas estranhas. Em meio àquele ambiente minuciosamente reconstruído (ao mesmo tempo realista, fantasmagórico e estranho aos olhos), está instalado um núcleo de artes semelhante a um aquário. Ali, os artistas-residentes vivem em um tempo outro, longe da aceleração da vida urbana, até serem ameaçados por um projeto imobiliário em franca expansão. A peça funciona, dentre outras coisas, como uma metáfora para o atual estado da arte, que de algum modo não tem onde se firmar – e justamente a partir dessa condição movediça pode juntar forças para resistir às tentativas de enquadrar a vida.

Também em “The Night of the Moles (Welcome to Caveland!)” (2016), o palco é transformado no interior de uma caverna, repleta de estalagmites e estalactites. Naquele microuniverso comprimido e escuro, sete toupeiras gigantescas passam os dias envoltas nas demandas mais banais da espécie, ao mesmo tempo em que, absurda e inesperadamente, estão preocupadas com a banda de rock por elas criada. Aquelas criaturas cegas, que por vezes se perdem no gesto de arrastar pedras para lá e para cá, se tornam arquitetas de um mundo novo. Arrancam um sentido para a existência por meio de arranjos musicais inusitadamente psicodélicos e forjam a utopia em um espaço que parecia ser apenas o palco de uma existência ensimesmada, solitária e melancólica.

Essa busca do maravilhoso onde já não parece haver possibilidades é retomada em “Crash Park, la vie d’une île” (2018), encenação na qual um grupo de pessoas, após um desastre de avião, termina em uma ilha inabitada por humanos e distante de tudo. A cenografia exuberante, composta de uma minúscula ilha com um pequeno vulcão é literalmente rodeada de água e acompanhada, próximo dali, pela carcaça de um avião acometido por um acidente. No ambiente onde antes conviviam pacificamente o pequeno vulcão e seres como sereias, agora se encontra o homem, imbuído de toda a bagagem alucinante e destrutiva da civilização. Mas se uma ilha deserta é palco do isolamento, do desespero e da angústia da salvação, na encenação de Quesne, assim como em toda tradição literária e cinematográfica que vai da Odisseia de Homero ao “Náufrago” (2000), filme dirigido por Robert Zemeckis, passando pelo Robinson Crusoé de Daniel Defoe, ela é também palco das descobertas do humano, desde sua aventura por autoconhecimento à investidura na produção de novos meios de vida e novos mundos.

“Farm Fatale” – onde parecia haver só morte…

A disposição de aumentar para ver melhor, a relevância de objetos que de algum modo assumem significação incomum, a combinação de lugares improváveis, estranhos e ermos com personagens que precisam forjar uma outra vida, bem como a fascinação quase infantil do conjunto dos elementos continuam em “Farm Fatale”, espetáculo dirigido por Quesne com a companhia alemã Münchner Kammerspiele.

Na peça, um grupo de espantalhos perde sua antiga função. Após o suicídio de proprietários da região e após a debandada de agricultores que se viram pressionados pelo agronegócio, eles se tornam tecnicamente desempregados. Enquanto ocorre o colapso do mundo ao redor, a fazenda abandonada onde essas cinco figuras bizarras agora se reúnem se converte em um lugar por se fazer, em laboratório de um novo mundo.

Cena do espetáculo Farm Fatale, de Philippe Quesne . Foto: Guto Muniz.

São seres em busca de um recomeço. Diferentemente das outras encenações de Philippe Quesne, a cenografia agora é toda branca e há aqui e ali fardos de feno, grandes garfos e alguns implementos agrícolas, mas não o clima sombrio do pântano, a claustrofobia de uma caverna ou o isolamento contrastado com a amplitude de uma ilha em meio ao mar, muito menos os elementos em perspectiva ou o jogo vastidão-aperto – apenas o nada de um cenário todo branco. A simbologia dessa escolha é reforçada pela presença sutil, mas irresistivelmente irônica, de uma placa na qual se lê “Umleitung”, que em alemão significa “desvio”. O ambiente ao qual esses espantalhos se reduziram é um grande vazio, lugar que não merece sequer ser erguido à condição de ponto de parada. Por outro lado, não se pode deixar de levar em conta que o conjunto branco também se assemelha a uma grande folha de papel, ou a uma tela por pintar, de modo que à irrelevância e ao vazio se contrapõe a possibilidade de ali ser inscrito o desenho de uma nova forma de vida.

A ambivalência é também o que atravessa a presença dos próprios espantalhos em cena. Figuras forjadas para simular o humano e espantar aves de hortas ou plantações, não parecem de início ser os melhores representantes de um mundo novo. Há algo de irônico, portanto, nesta dramaturgia de Martin Valdés-Stauber e na direção de Quesne, pois o imaginário em torno de espantalhos é tradicionalmente o da fantasmagoria. Isso é reforçado pelos rostos mascarados (técnica alemã ancestral de cobrir os rostos com um tecido), pelas feições disformes, inchadas e levemente atordoadas, pelos corpos que se assemelham inicialmente a marionetes sem vida e pelas vozes projetadas, distorcidas com um eco eletrônico, que sugerem um som vindo além e, desse modo, separado daqueles corpos. Por outro lado, se esses seres de pantomima excêntrica, de aparência assustadora e lunática geram inevitável estranhamento, eles ao mesmo tempo são os protagonistas de uma comunidade apartada e autônoma, verdadeiros hippies de palha que querem preservar o que o mundo ainda possui de belo. Espantalhos que se envolvem na saga de gravar sons da natureza ao redor e reproduzi-los na estação de rádio pirata que empreendem como forma de tentar salvar o planeta. Utilizam toda a parafernália ali abandonada (o microfone para as gravações é preso em um grande garfo para a coleta de feno) para arquivar e ressignificar os sons de riachos, o chilrear de pássaros e o canto do galo – tudo aquilo que o capitalismo furioso do campo ignora e solapa em nome da produtividade. Esses seres bizarros se tornam, desse modo, inesperados arautos da poesia de um mundo possível. Cantam “Stand by Me” para uma abelha e entrevistam o último exemplar da espécie, conversam com uma cenoura que é vítima da estigmatização, fazem um rap ecológico para espantar o proprietário vizinho que quer colocar pesticidas no campo e tentam guardar os ovos de uma criatura estranha, pois neles se pode armazenar cheiros e sons da natureza…

… há vida

Fantasmagóricos, eles possuem inevitável parentesco com o teatro de objetos de Tadeuzs Kantor, e dirigem assim o nosso olhar para um mundo em desaparecimento. Mas ao se envolverem nesta tarefa de início absurda, parecem se converter em arquivistas, artistas e militantes em busca de outro futuro possível, regando de lirismo aquelas vozes quase metálicas e o cenário asséptico. Por trás do seu gesto delicado e minúsculo, quase risível, mas não inocente, redimensionam o impacto da destruição e despertam em nós aquilo que Dipesh Chakrabarty explicou como um “senso do presente que separa o futuro do passado” (2013, p. 2). Afinal, é inevitável não pensar em como seria a vida no planeta após toda a catástrofe ambiental que promovemos – a mesma que pode ser capaz de eliminar os próprios seres humanos do planeta.  

Se estamos envoltos em um sistema que transforma a relação com o campo em fonte de lucro desmedido, é como se esses espantalhos expusessem, sem panfletarismo, o absurdo de convivermos com os campos repletos de agrotóxicos e pesticidas, com a produção agrícola em larga escala que expulsa camponeses das pequenas propriedades e aceita que milhões vivam na subnutrição, ao mesmo tempo em que há um mercado de orgânicos de preços exorbitantes e restrito a uma elite.

“Farm Fatale” tem algo de realista, cáustico e fatal na mensagem, mas sua forma está longe de ser punitiva. O tradicional humor que Quesne busca na estranheza encontra aqui um refinado acabamento. Espantalhos símbolos do horror se tornam figuras quase convidativas. Nessa nova realidade, uma vez que não estão mais subordinados aos humanos, eles se emancipam da função de espantar. Parecem dizer que, diferentemente da espécie “evoluída” e “racional”, são eles os amigos dos pássaros e que, como abelhinhas, serão eles a se dedicar a um trabalho invisível no qual se forja a utopia. Parecem distantes de nós, mas nos convidam a fazer o mesmo, arrancando a beleza de onde só parece haver o feio.

Referências

CHAKRABARTY, Dipesh. O clima da história: quatro teses. Sopro, n. 91, p. 2-22, 2013.