UM TEATRO DO PORVIR

Entrevista com Cacá Carvalho

Por Alberto Silva Neto

Cacá Carvalho e Alberto Silva Neto
Foto: Celso Rodrigues (Diário do Pará)

O paraense Cacá Carvalho, 71 anos, é um artista consagrado do teatro brasileiro. Ator, diretor e pedagogo, começou a carreira no Grupo Experiência, em Belém, na década de 1970. Ainda muito jovem rumou para São Paulo, onde ganhou notoriedade nacional e internacional ao protagonizar o espetáculo “Macunaíma”, de Antunes Filho, a partir do romance de Mário de Andrade. Com ele, Cacá rodou o mundo, entre 1978 e 1982.

Em 1986, assombrou novas plateias com “Meu tio, o iauaretê”, adaptação para teatro do conto homônimo de João Guimarães Rosa, com direção de Roberto Lage. Sua atuação como o personagem Beró – homem que se embrenha no mato para matar onças e acaba se metamorfoseando em uma – rendeu-lhe os mais importantes prêmios nacionais.

Com esse espetáculo, Cacá participou de um festival na Itália, em 1988, onde foi assistido por Jerzy Grotowski, Eugenio Barba e Roberto Bacci, entre outros nomes importantes do teatro no Século XX. A performance dele resultou em convite para colaborar no então Centro de Pesquisa e Experimentação Teatral de Pontedera, cidade de 35 mil habitantes na região da Toscana. Ali, iniciou uma parceria com Bacci, que o dirigiu em espetáculos solo a partir das obras de Luigi Pirandello e Fiódor Dostoiévski.

Essas são apenas algumas das realizações que constam em seu respeitável currículo. Mas, a alma inquieta de Cacá recusa o conforto da consagração. Suas duas últimas criações são prova irrefutável disso. Em “A próxima estação – Um espetáculo para ler” e “Leonardo Da Vinci: a obra oculta”, ambos criados a partir da obra do dramaturgo italiano Michele Santeramo, Cacá desafia paradigmas da atuação cênica, ao vestir trajes civis para “apenas” ler os textos, recusando qualquer caracterização de personagem. No palco, o ator contracena com ilustrações de Cristina Gardumi. A criação tem direção de Santeramo, coordenação artística de Márcio Medina e colaboração de Roberto Bacci.

Após dez anos, é com “A próxima estação” que Cacá está de volta a Belém (PA), sua terra natal, para duas apresentações, que acontecem nos dias 05 e 06 de Junho no Teatro do SESI. A narrativa trata da vida do casal Violeta e Massimo, cuja trajetória é contada em estações, nas quais vivenciam adaptações que precisam fazer diante de novos modos de vida, em um futuro distópico.

Cacá foi entrevistado pelo encenador e professor Alberto Silva Neto, dirigido por ele em três espetáculos, em Belém, pelos grupos Experiência e Cuíra. Alberto também tomou o trabalho de Cacá como tema de estudo em sua tese de doutorado pela UFMG.  

Cacá Carvalho em A Próxima Estação. Texto e encenação de Michele Santeramo
Foto: Lenise Pinheiro

Alberto Silva Neto – O espetáculo “A próxima estação” narra 50 anos na vida de um casal, entre 2015 e 2065. Por que contar uma história que se passa no futuro?

Cacá Carvalho – É um futuro distópico. Ao invés de água com açúcar, optamos por um sabor difícil de engolir. Por isso a narrativa vai a lugares que a gente não sabe, porque lá pode ser que tudo seja verdade. Espero que não. Mas, talvez já esteja acontecendo hoje.

ASN – Tem a ver com o que nossa humanidade está se tornando, ou nos tornando?

CC – Sim. A base do meu trabalho não mudou nada. Sempre é uma reflexão sobre o que estamos nos tornando nesse dia a dia, rumo ao desconhecido. Então tudo parte de quem você é, o que você faz. Cuide disso, porque você não sabe o que vem pela frente. No meu espetáculo mais recente, sobre Leonardo Da Vinci, esse sujeito não sabe como se resolver diante do futuro, mas é escravo de uma coisa terrível que ele fez no passado, e paga por isso, porque dizem que é linda, que se chama Monalisa. Esses dois trabalhos fazem parte dessa pesquisa mais recente, que olha pro nosso futuro. A forma talvez mais contida que isso toma é consequência. Mas não é pra ser minimalista. Quando Fernanda Montenegro assistiu ao “A próxima estação”, disse que eu finalmente havia chegado no banquinho e violão. Sim, é. Mas isso não é a minha preocupação. Não há, também, nenhuma intenção de ser poético. Mas resulta numa coisa aparentemente pueril que, no entanto, toca em um ponto da gente que faz pensar “olha, mas é assim mesmo”. Alguns espectadores têm relatado a impressão de estarem escutando contadores de histórias.

ASN – Isso é curioso porque cria um paradoxo. Você está falando de um futuro distópico, mas numa relação também com experiências ligadas à ancestralidade.

CC – É exatamente isso. Esse é o grande jogo do trabalho. Eu te levo pra lá, pra você não esquecer disso aqui. “A próxima estação” é um espetáculo em que há um lamento de que não se fez nada pra salvar o mundo, como a minha geração não fez e a sua também não faz. No espetáculo sobre Leonardo da Vinci é pior: não deu certo, então vou construir uma máquina pra acabar tudo. O propósito é nos acordar pra essa questão.

ASN – Interessante. Isso me lembra o discurso tanto de cientistas quanto de xamãs de que estamos, como nunca antes, diante de um esgotamento das condições de vida no planeta. Os propósitos desses espetáculos tem relação com esse debate?

CC – É isso! Acontece que todos de quem você fala, que chegam a essa conclusão, colocam esse discurso na mídia, mas não resolvem. Alertam, mas não ecoa, porque as pessoas estão impermeáveis. Está acabando, ou talvez já tenha até acabado. Porque as pessoas não reagem. A relação com o “moderno” também nos faz caminhar para o fim. Nós perdemos tanta coisa com a pandemia, mas isso também não mudou nada. Isso não está na mão dos cientistas, está na mão de cada um. Reações climáticas terríveis estão aí e continuamos todos impermeáveis. Vamos todos fazer a revolução, mas ninguém faz. Eu estou indo por esse caminho. Meu trabalho toca questões fundamentais do homem.

ASN – “A próxima estação”, aparentemente, parece estar na borda da ideia que se tem de teatro. Você veste traje civil e lê o texto, destacando o corpo da palavra.   

CC – Você disse a palavra-chave do espetáculo: aparentemente. Aparentemente é um espetáculo. Aparentemente ele não é interpretado. Porque na vida nós não vivemos a vida, nós vivemos o “aparentemente”. A vida parece que é. Parece que tem amor entre duas pessoas, ou ódio. Tudo parece. No fundo, talvez as pessoas devessem ser aquilo que não parecem, diferentemente do Iago [personagem da peça “Otelo, o Mouro de Veneza”, de William Shakespeare], que fala que as pessoas devem ser aquilo que parecem. Não. Talvez devessem ser aquilo que não parecem. Seria mais honesto.

ASN – Quero voltar ao tema da Monalisa. Quais seriam as “Monalisas” do Cacá que, assim como fazem com a de Da Vinci, as pessoas insistem em revisitar?

CC – Tudo que fiz e fica na memória das pessoas é algo que me aprisiona. Mas sou grato que a minha desgraça cometida e aplaudida nesses anos todos não funcione hoje, porque a vida é caminhar para o fim, e não permanecer no passado. O passado é péssimo, uma âncora que não te deixa nem atravessar uma rua. A verdade absoluta, você encontrará apenas no último respiro. Há uma coisa que hoje eu questiono e ponho em xeque: a memória no teatro é combustível pra alguma coisa, ou apenas âncora?

Distopia e fábula afetiva
Foto: Lenise Pinheiro

ASN – “Macunaíma”, nesse sentido, me parece exemplar. Mas, por outro lado, você diz que, até hoje, quando se move é princípio de Antunes Filho se movendo.

CC – Quando eu me movo é resultado de todo o vivido. “Macunaíma” está dentro, como está o pássaro junino que dancei pela primeira vez, levado pela minha mãe. Mas isso não pode virar âncora. O problema é carregar essas coisas como se fossem troféus.

ASN – Você foi colaborador por mais de três décadas do centro de pesquisa em Pontedera, na Itália, que também abrigou a última etapa das pesquisas de Jerzy Grotowski, um dos nomes mais importantes do teatro no Século XX. Como foi sua interlocução com ele e o que há do pensamento dele sobre teatro no seu trabalho?

CC – Quando você encontra com mestres importantes, passa um período grande apenas papagaiando aquilo. Então essa repetição fica sem profundidade, porque não envelheceu dentro dessa adega cheia de vinho que nós somos. Eu tenho muito mais encontro dentro de mim com o Roberto Bacci, porque é uma fonte ainda viva, ainda se escrevendo, com quem eu dialogo, debato. Grotowski eu tenho como tábua dos dez mandamentos, mas que não consigo aprofundar porque não tem o diálogo vivo. Então é complicado ter resoluções profundas do meu embate com ele. Há conclusões muito mentais, enquanto com Roberto tenho conclusões palpáveis. Isso o torna muito mais importante e ativo.   

ASN – Entre tantos, certamente seu mais importante interlocutor e parceiro de criação é o cenógrafo e figurinista Márcio Medina, também companheiro de vida há mais de 40 anos. Como compreende o sentido dessa partilha na sua trajetória?

CC – O Marcinho é uma pessoa boa, simpática a tudo e a todos. Eu admiro, porque não tenho essa qualidade. E fico muito feliz de ver como ele administra, embora pague por isso, também. Mas a coisa mais bonita, desde o nosso primeiro encontro, é ver o quanto experiências distintas, minhas e dele, embora algumas vezes façamos percursos juntos, entra uma na outra, e fica. Muito do que eu faço ecoa nele, não para que ele faça o que eu faço, mas vira uma outra coisa que me deixa maravilhado de ver como ser torna dele. Ele tem essa capacidade de reciclar tudo que entra nele, e dali saem coisas com muita propriedade. E aí eu fico muito inspirado por uma coisa que ele tem e eu não tenho, que é essa capacidade imensa de atender a tanta demanda, com uma qualidade que me deixa estupefato e muito feliz. Habita-se junto, mas são trajetórias muito diferentes, também. E que maravilha isso. Não existe competição. Não sabemos o que é isso na nossa vida, juntos. E não existe colaboração no sentido de eu dizer a ele como se faz, ou ele dizer a mim. Tem uma coisa que eu admiro muito: ele descobre materiais. Aprendo muito com ele, não para fazer o que ele faz. Ele não é apenas um grande cenógrafo e figurinista, mas um grande criador. Ele transforma coisas em lugares, usa muito essa palavra.  

ASN – A pandemia acelerou um processo histórico que aproxima a cena contemporânea do mundo virtual. Você mesmo fez uma criação chamada “Ítaca, 365, apto 23”, inspirado na “Odisseia”, de Homero, transmitido pela internet. Você acredita que estamos diante de um novo paradigma da noção de presença cênica?

CC – Eu acho que aquele trabalho não levou a lugar nenhum até agora. Aquilo ali foi uma espécie de band-aid pra parar um sangue. Todo mundo recorreu a esse expediente pra continuar produzindo, inventou aquilo como uma reação a um momento em que todos nós éramos vítimas de uma coisa que impedia nosso trabalho. E reagimos daquela maneira. Hoje eu não vejo gente que só faça teatro online. Não houve continuidade. Aquele trabalho a que você se refere foi uma oportunidade de voltar para casa.

ASN – Falando em voltar pra casa, qual o sentido de retornar a Belém agora?

CC – Não sei o sentido porque ainda estou vivendo isso. Quando eu volto, volto pra ver um velho amigo, a cidade como um velho amigo. E ver que esse velho amigo tem tanta história, mas consegue realizar tão pouco. Porque o poder público, em geral, não percebe o artista de teatro, o único ainda praticante do discurso de um homem diante de outro homem. Essa coisa antiga que é a chave para que se possa, por um momento, alterar a cabeça de alguém, porque não tem nada no meio deles. Isso é perverso.    

ASN – Pra terminar essa conversa, qual o sentido do risco na vida de um ator?

CC – O tempo é uma fábrica de revisões. Tenho 71 anos. O meu discurso de 20, 30, 50 está dentro de mim. Mas não posso desconsiderar que hoje tenho muito mais tempo vivido do que pra viver. Então eu preciso que o que venha pela frente me dê algum conforto, porque a realidade do meu corpo mudou. Preciso tomar mais cautela, mas ela é inimiga do risco. Então como fazer pra não perder a capacidade de arriscar todo dia?

ASN – Parafraseando Hamlet, “eis a questão”. Muito obrigado, Cacá.  

  • CENA ABERTA agradece ao professor Alberto Silva Neto e ao ator Cacá Carvalho, pela conversa inspiradora . E ao jornal Diário do Pará, pela cessão do texto.

SERVIÇO

“A próxima estação – Um espetáculo para ler”

De Michele Santeramo

Com Cacá Carvalho

Dias 05 e 06 de junho, às 20H

Teatro do SESI – Avenida Almirante Barroso,  2540

Duração: 70 minutos

Faixa etária: Maiores de 12 anos

Ingressos a R$ 80 (inteira) e R$ 40 (meia) Vendas: Sympla

FICHA TÉCNICA

Com Cacá Carvalho (Carlos Augusto Carvalho Pereira)

Texto e Direção: Michele Santeramo

Tradução: Cacá Carvalho

Ilustrações: Cristina Gardumi

Coordenação Artística: Márcio Medina

Assistente de Direção na Itália: Erica Artei

Colaboração Artística: Roberto Bacci

Músicas Originais: Sergio Altamura, Giorgio Vendola e Marcello Zinn

Sonorização e Projeção: Kako Guirado e Tiago Mello

Operação de vídeo, som e luz: Kenny Rogers

Fotografia: Lenise Pinheiro

Assessora de Imprensa: Roberta Brandão

Produção: Corpo Rastreado/Nathália Christine

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