Uma não-peça para um teatro sequestrado

Jaha Koo: intimidade e história. Foto: Leontien Allemeersch

Kil Abreu

Uma das coisas mais importantes nesta edição da MITsp é o deslocamento da programação para fora do eixo europeu.  Quanto ao que se oferece à plateia, não é apenas a afirmação de uma retórica “decolonial”  – esse conceito que pode levar a tudo, inclusive à esterilização do debate.  É já o exercício de uma prática efetiva de dissenso. Através de um festival que reúne milhares de pessoas, podemos pensar em uma prática que além da seara propriamente artística toma para si a disputa de valores e direitos através do teatro. Por exemplo, o direito à representação, à circulação e à fruição das criações vindas do chamado Sul Global, no sentido geopolítico da expressão.  

Que possamos assistir a montagens vindas de mundos como a Costa do Marfim, o Líbano ou a Coreia, que a mostra apresente esta cena à classe média politizada e aos estratos informados da classe trabalhadora que a frequentam, é algo digno de nota. Não se trata apenas de reconhecer eventuais novidades em relação a informações socioculturais específicas ou em relação a abordagens teatrais singulares. Não se trata, igualmente, de promover uma diversidade genérica, como se a questão fosse apenas ampliar a oferta no grande supermercado da cultura. Salvo engano o maior ganho dos espectadores não está aí. Está na dialética a que somos chamados quando verificamos que as questões locais que os espetáculos apresentam trazem contradições que já não cabem no imaginário típico criado por nós a respeito das margens do mundo. O estranhamento entre as imagens idealizadas e as imagens ordinárias gera espaço para a emergência de uma vida mais complexa que a esperada. Este é o dado estético mais valioso. Estranhamento e – surpresa – identificação, quando descobrimos que em muitos aspectos temos a mesma história.

Se este argumento permanecer de pé, o trabalho de Jaha Koo, artista coreano em foco nesta edição da Mostra, é exemplar quanto ao tratamento destes desvios através da cena. Seu espetáculo A história do teatro ocidental coreano faz trinca com outros dois apresentados na MIT: Lolling and rolling e Cuckoo.

É uma montagem um tanto desconcertante. Foge a categorizações. Joga com recursos e linguagens emprestadas da vídeo-performance, das artes visuais, da música experimental, do teatro documental. É um solo em que escandalosamente quase se dispensa um elemento que faz parte do núcleo duro do teatro, o ator. Por sorte Jaha Koo é um excelente não-intérprete. A compensar a sua solitária habitação das tábuas, também estão em cena dois personagens que cumprem com ele a parte dialógica: uma panela eletrônica de fazer arroz e uma tartaruga de origami, técnica secular feita através de dobraduras de papel. São duas figuras que movimentam-se, respiram  e conversam com o artista. Têm moral e ponto de vista. Trata-se, claro, de um dispositivo irônico (de bom efeito, aliás) que arrasta consigo uns tantos sentidos implícitos. O origami é artefato cultural de origem japonesa. Um dos relatos que aparecem em cena é em torno da anexação da Coreia feita pelo Japão nas primeiras décadas do século XX. Vinda de uma virada industrial na segunda metade do século passado, a Coreia do Sul é hoje uma das principais economias da Ásia, com uma indústria forte baseada na tecnologia e na produção de automóveis, peças e produtos eletrônicos. É também uma praça comercial reconhecida pelo grande volume de produção e pelo uso de mão de obra barateada.

O espetáculo coreano apresentado na MITsp

Colonialismo e invenção

Estas informações não estão no primeiro plano do espetáculo, mas certamente fazem parte do seu substrato. A subjetividade que forja as criações artísticas não está apartada das condições materiais que a contextualizam. Os duplos entre autenticidade cultural e culturas impostas, entre artesanato e tecnologia, entre colonização e autonomia, estão todos na montagem. Há dois eixos fortes que motivam a dramaturgia: a notícia sobre o sequestro das formas populares e tradicionais do teatro coreano e o sentimento do artista diante de um mundo rendido ao pastiche e à despersonalização da vida.

Não é uma peça de teatro. Talvez possamos falar de um evento cênico, de uma cuidadosa sinfonia sem nenhum interesse por arroubos retóricos. A trilha sonora é muito importante (Koo é compositor). A música é a ânima, em geral repousada, da cena. O ritmo das intervenções musicais, a duração dos sons no tempo, remete às variações visuais e de pensamento. Nem sempre como extensão ou tradução das imagens. Por vezes a remissão surge em contraponto.  O andamento, por sua vez, é em geral repousado, não tem gosto por intensificações, prefere a distensão. Então há este contraste muito significativo entre as imagens fragmentadas mostradas no vídeo, o ritmo variado e o andamento, que tende ao uniforme, ao meditativo. Uma narrativa vídeo-musical com doce apelo melancólico. A dramaticidade, se existe, tem que ser buscada no vão, digamos, impressionista que o arranjo cênico, assim disposto, cria. 

            Neste caminho, a cena tende a suspender as demandas objetivas do espetáculo. Suspender para instalar, antes da denúncia em torno de um teatro e de uma sociedade sequestradas, certo estado da subjetividade que tem mais a ver com a explicitação de um sentimento diante da perda coletiva que com a denúncia militante. A posição política do artista não nos chega imediatamente. É, ao contrário, mediada por essa distensão das questões de fundo, que surgem relativamente abertas. Como se a queixa não tivesse a intenção de disputa. Como uma voz à capela, através da qual a chamada épica dos temas é contrastada com a maneira como é apresentada – através da memória íntima. Parte da teatralidade nasce desse descompasso entre o apelo social do assunto – as formas violentas do colonialismo -, e a sua vocalização singular, pessoal e intransferível.         

            A originalidade no trabalho de Jaha Koo talvez não esteja apenas na atualização cênica destes assuntos, em chave pessoal, e sim no contorno curioso, irônico e, portanto, crítico, criado para apresentar em chave simbólica este processo.

O artista mistura meios tecnicamente avançados de representação do real a antigas demandas ligadas à sobrevivência e valoração do que comumente chamamos “culturas tradicionais”. Mas a encenação ganha ossatura ao não aderir à facilidade dos discursos e esquemas prontos sobre a “ocidentalização” das tradições culturais do Oriente.  E também não cai na armadilha de uma defesa regressiva em torno do paraíso perdido, tão característica do pensamento da classe média formada na defesa em abstrato das tradições culturais.

O espetáculo tem o mérito de performar as suas questões no fio da lâmina entre a documentação antropológica do processo histórico e as suas traduções nos termos de uma possível subjetividade contemporânea. Nos faz ver,  talvez não deliberadamente, de que maneira a sustentação do sistema hegemônico passa não só pelo atropelamento do sujeito como também pela reconfiguração violenta de toda a sociabilidade. Ao denunciar sem alarde mas com grande sensibilidade estética o apagamento das formas teatrais nascidas do povo em meio aos processos de dominação, Jaha Koo posiciona-se a favor de uma arte que ao reinventar-se pensa quem sabe a possibilidade de horizontes que não estão à vista.    

  • A história do teatro coreano ocidental foi apresentado na Mostra internacional de teatro de São Paulo, Teatro do SESI, nos dias 03 e 04 de Março de 2024.
  • Este texto faz parte do projeto Arquipélago de fomento à crítica, apoiado pela produtora Corpo Rastreado. Fazem parte do projeto as casas: Ruína Acesa, Guia OFF, Farofa Crítica, Horizonte da Cena, Agora Teatro, Tudo menos uma crítica e Satisfeita,  Yolanda?  

FICHA TÉCNICA

Conceito, texto, direção, música e vídeo: Jaha Koo

Performance: Jaha Koo, Seri e Toad

Dramaturgia: Dries Douibi

Cenografia e desenho: Eunkyung Jeong

Orientação artística: Pol Heyvaert

Técnica: Korneel Coessens, Jan Berckmans, Bart Huybrechts, Koen Goossens (e Jonas Castelijns)

Hackeamento de hardware: Idella Craddock

Pesquisa: Eunkyung Jeong e Jaha Koo

Assistência de pesquisa: Sang Ok Kim

Entrevista: Jooyoung Koh, Kiran Kim e Kyungmi Lee

Produção: CAMPO

Coprodução: Kunstenfestivaldesarts (Brussels), Münchner Kammerspiele, Frascati Producties (Amsterdam), Veem House for Performance (Amsterdam), SPRING performing arts festival (Utrecht), Zürcher Theaterspektakel, Black Box teater (Oslo), International Summer Festival Kampnagel (Hamburg), Tanzquartier Wien, wpZimmer (Antwerp), Théâtre de la Bastille (Paris) e Festival d’Automne à Paris

Residências: Kunstencentrum BUDA (Kortrijk), wpZimmer (Antwerp), Decoratelier Jozef Wouters (Brussels) e Doosan Art Center (Seoul)

Apoio: Beursschouwburg, Vlaamse Gemeenschapscommissie e Amsterdams Fonds voor de Kunst, Centro Cultural Coreano no Brasil

CAMPO é apoiado pela cidade de Ghent e pela Flemish Community [Comunidade Flamenga]

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