Sobre Uma mulher de muita importância, biografia de Cacilda Becker escrita por Maria Thereza Vargas.
Por Kil Abreu.
No centenário de nascimento de Cacilda Becker (1921-2021) volta à cena não só a história da atriz e sua festejada, importante passagem pelo teatro brasileiro. Nos chega também a história de uma amizade. A partir de uma das mais importantes pesquisadoras da cena nacional, Maria Thereza Vargas, que acompanhou intimamente a trajetória de Cacilda. Hoje com 92 anos e em atividade, Maria Thereza tornou-se pesquisadora e historiadora central do teatro em São Paulo. Sua chegada é já pela pesquisa e registro. Ainda nos anos 50, depois de formada em dramaturgia pela Escola de Arte Dramática, é responsável pela edição dos primeiros Cadernos de teatro, projeto do grupo carioca O Tablado. Entre outros acompanhamentos marcantes da cena, esteve na equipe que debateu o Seminário de Dramaturgia do Teatro de Arena, entre 1958 e 1960. Entre 1975 e 1997 foi pesquisadora do IDART (hoje Arquivo multimeios do Centro Cultural São Paulo). Ali desenvolveu, por vezes em parceria com outras pesquisadoras como Mariângela Alves de Lima e Nanci Fernandes, investigações que tornaram-se referências. Por exemplo, em torno do teatro operário e anarquista, o circo, os arquivos fotográficos de Fredi Kleeman, e de artistas como Miriam Muniz. Quase todas as pesquisas viraram livros. O mais recente é Cem anos de teatro em São Paulo (Senac), que escreveu com Sábato Magaldi.
Mas a paixão maior de Maria Thereza Vargas sempre foi Cacilda Becker, que conheceu aos 16 anos. Seriam amigas por toda a vida. A ela, Cacilda, dedicou duas biografias. A mais atual é Cacilda Becker – Uma mulher de muita importância (Imprensa Oficial). É um trabalho iluminado por estas duas privilegiadas condições: a de dominar com rigor os instrumentos de registro e a de conhecer como poucos a biografada, por conta de uma convivência que alimenta a narrativa, traz a um só tempo elementos documentais preciosos e a tonalidade afetiva na leitura do material apresentado. Há uma rica iconografia, em parte inédita, colhida principalmente no arquivo pessoal da pesquisadora e no Arquivo multimeios do CCSP.
Narrado em ordem cronológica, o livro apresenta Cacilda desde o tempo em que pretendia ser bailarina, até ser “descoberta” em Santos (ela era natural de Pirassununga, interior de SP), no início dos anos 40, pelo crítico e diretor Miroel Silveira. Entre 3.200 metros de altitude, de Julien Luchaire, sua estreia oficial no carioca Teatro do Estudante do Brasil, e Esperando Godot, de Becket, seu último trabalho, passou-se uma vida em que para sempre foi riscado o chão do teatro brasileiro, tanto no sentido da obra artística quanto da militância em favor da arte, como lembra já de saída a autora: “a atriz abriu a tapa o seu caminho, conseguindo despojar-se de todo o encanto por si mesma e incorporar com fé toda uma categoria”.
Depois de um momento de aprendizado em trabalhos semi-profissionais com ensaiadores como Sadi Cabral e Laura Suarez, encontra Bibi Ferreira, Miroel Silveira e Décio de Almeida Prado – todos mestres e mestras. O encontro artístico definitivo, no entanto, será com “seu” Ziembinski, o polonês refugiado de guerra que ajudaria a fazer a passagem, nos anos 40, a um teatro de novas bases entre nós. Ziembinski propunha um sistema de trabalho que exigia menos regras e mais técnica, menos as convenções do velho teatro do Século XIX e mais autonomia criativa tanto para os atores quanto para o ensaiador, agora já na posição de um verdadeiro encenador, em termos modernos. Os ensinamentos valeriam muito a Cacilda, e várias vezes ela subiria à cena em companhia do mestre.
Maria Thereza Vargas recorre em todo o livro a uma fina percepção crítica, que comenta a reverberação do trabalho de Cacilda nos jornais da época. E sempre que possível arremata o registro com um outro olhar, em que se empenha ao fazer relações e projetar o que a partir dali já se aponta: “a atriz trabalha muito a personagem. E sua Mônica Filimore vem com traços de firmeza e de infinita ternura. O caráter bate com suas emoções íntimas, com sua firmeza, com seu desejo que será de toda a vida, de completar-se na figura amada” (Sobre Não sou eu, de 1947).
De volta a São Paulo no final dos anos 40, Cacilda vai para o TBC, mistura de negócio e aventura artística, uma das expressões do mecenato ítalo-paulista do pós-guerra, tendo à frente o empresário Franco Zampari. Cacilda é já profissional, dona de certa trajetória. Torna-se a primeira atriz da casa e está na maior parte das montagens, entre 1949 e 1955. Lá encontra, como diz , “a melhor escola”, e a ela também empresta o melhor que o seu talento pode render. É dirigia por Adolfo Celi, seu futuro marido ( Arsênico e alfazema, Seis personagens à procura de um autor, Entre quatro paredes), por Ruggero Jacobbi (A ronda dos malandros, Filhos de Eduardo) e Ziembinski (Maria Stuart, Pega fogo), entre outros. Sobre Pega Fogo, texto naturalista de Jules Renard em que encarna um garoto pobre e em conflito com a mãe, diz-se que foi uma das mais impressionantes composições da atriz. No relato da autora: “O certo é que Cacilda anulou-se em Pega fogo. Era um menino. Tanto foi sua integração à personagem que dizia aos amigos que o conhecia tão bem que seria capaz de interpreta-lo como um adolescente, como um rapaz e ainda em sua plena maturidade”.
Outras renovações
Ao sair do TBC Cacilda já é a maior atriz brasileira, inclusive com reconhecimento internacional (Pega fogo fizera temporadas em Portugal e na França). Entretanto, o panorama se modifica. O arco de interesses que inaugurara o moderno teatro no Brasil vai perdendo o viço e dando espaço a novas florações. Para a primeira geração moderna – da qual Cacilda é um dos maiores símbolos – o programa fora basicamente o de profissionalizar o teatro, capacitar os intérpretes tendo como ponto de chegada a renovação do repertório , que deveria incluir clássicos e grandes autores atuais.
Entretanto, os tempos são outros. Já no final dos anos 50, nos lembra a autora, em uma entrevista para a revista Manchete, o diretor Flavio Rangel – que dirigiria Cacilda anos depois, na fatídica montagem de Esperando Godot – provoca a atriz etiquetando-a como “alienada e repetidora de formas gastas”. É irônico, diz Maria Thereza, “retratando-a como uma Sarah Bernhadt nativa, cujos gritos, segundo os maquinistas do teatro, venciam os barulhos do martelo”.
A questão, entretanto, não é tão pessoal quanto parece. A essa altura uma outra geração, à qual Rangel adere, reclama horizontes diferentes para o teatro brasileiro. É o raiar de autores como Jorge Andrade – este inclusive incentivado pela própria Cacilda -, Plínio Marcos e Ariano Suassuna. A “nacionalização” do palco intensifica-se Brasil afora, com vocação para formas cênicas muitas vezes favoráveis a um teatro social, sob a influência de Brecht. É quando surge em São Paulo o Teatro de Arena, centro de um novo ideário.
A crise diante desta conjuntura foi da maior importância para a atriz. Não que tenha operado mudança radical no repertório. Mas ajudou a inquietar e a consolidar sua Companhia, o Teatro Cacilda Becker. Um voo autônomo, junto com antigos parceiros do TBC: Ziembinski, a irmã Cleyde Yáconis, Fred Kleeman e o futuro marido, Walmor Chagas, também seu mais importante e duradouro companheiro de cena. Continuará a montar textos no estilo que a formara, mas matizados pela presença de novos dramaturgos brasileiros. É exemplar que o primeiro espetáculo do TCB tenha sido O santo e a porca, peça escrita especialmente por Suassuna para a Companhia (também por força de um Decreto que obrigava os novos grupos a estrear com peça de autor nacional). Foi a fase mais madura do seu trabalho como atriz, em que interpretou, entre outras personagens, a morfinômana Mary Tyrone de Jornada de um longo dia para dentro da noite, em “um dos instantes mais altos de todo o teatro brasileiro moderno”, na crítica de Décio de Almeida Prado.
Se o Teatro Cacilda Becker não assume a dramaturgia política como centro do seu projeto, o contrario acontece com a cidadã Cacilda Becker. Usando seu prestígio de grande atriz, passa a ser reconhecida também como uma liderança de classe, a quem os colegas recorrem em enfrentamentos à ditadura. É eleita Presidente da Comissão estadual de teatro, em São Paulo. Entre outras intervenções chama os artistas, em 1968, a um ato de desobediência civil contra os cortes feitos pela censura no texto da Primeira feira paulista de opinião.
Cacilda morreria jovem, com 48 anos de idade, em 1969. Interpreta o Estragon de Esperando Godot, “um papel extremamente exaustivo”, segundo ela, quando sofre um aneurisma em plena cena. Faleceria 38 dias depois. Na biografia este momento é iluminado lateralmente: a autora recupera a última entrevista de Cacilda, feita pela radialista Dayse Fonseca, antiga colega da atriz na rádio Tupy: “Dayse, querida, quando você e Rebello quiserem assistir à Godot basta ir ao teatro e lá na bilheteria me mandar um recado (…) É uma grande peça. Convide a Hebe também. Fale com ela. Beijo-te com carinho. Tua Cacilda”.
A exemplo desta passagem o livro de Maria Thereza Vargas apresenta, além de material inédito, um depoimento quase subliminar , admirado, que em nenhum momento ganha o primeiro plano do relato, mas que o alimenta com a afetividade que faz da leitura uma espécie de lembrança empenhada, carinhosa, na direção de uma das artistas de fato mais importantes em todos os tempos na cena brasileira.
Cacilda foi luz da cena assim como Maria Thereza é a uma das suas mais importantes testemunhas.
(A resenha original que orientou este texto, do mesmo autor, foi publicada na revista Cult. No. 183, Setembro de 2013).
Cacilda Becker – Uma mulher de muita importância
Maria Thereza Vargas. Imprensa Oficial (2013)
26cmX21cm, 160 págs.