A Digna Companhia, 10 anos: invenção e direito à cidade

Cena de “Condomínio Nova Era” (Liz Mantovani). Foto: Jennifer Glass

A Digna Companhia, de São Paulo, lança publicação sobre uma década de trajetória. O “livro-box” sai subvencionado pelo Programa Municipal de fomento ao teatro para a cidade de São Paulo. A edição dá conta de várias frentes: relatos de processos de pesquisa e montagem, inclusive das dedicadas às crianças e jovens;  depoimentos e perfis do núcleo artístico (Ana Vitória Bella, Helena Cardoso e Victor Nóvoa), cartas, textos de outres artistas-colaboradores e colaboradoras, registros dos projetos formativos e intercâmbios.

 O grupo notabilizou-se por criar encenações que têm como uma das pautas centrais o direito dos cidadãos e cidadãs à cidade. Em uma das maiores megalópoles do mundo, onde o problema da moradia e da precarização do trabalho é das extensões mais violentas da desigualdade social, o coletivo dedicou estes anos de atuação não só a tematizar como também a incorporar em seus espetáculos os lugares físicos e as paisagens humanas que são objeto de crítica. Entre o documental e o ficcional, é um projeto de longo fôlego em que se observa a antiga e sempre produtiva nota para a narrativa no teatro: o espaço – geográfico e político – define em muito as possibilidades da dramaturgia. E assim foi em espetáculos como “Entre vãos” (parceria com o grupo O Cafofo), “Convescotes” (série de experimentos públicos), “Condomínio nova era” e o recente “Estilhaços de janela fervem no céu da minha boca”. A ocupação cênica dos sítios urbanos, o tensionamento entre fixação e deslocamento, os ‘lugares de morar’ abandonados ou disputados pela especulação imobiliária fazendo as vezes de cenário – no sentido amplo do que pode ser uma cenografia – desenharam neste tempo uma poética com vontade de intervenção. E com juízo perceptível, favorável aos que estão nos andares de baixo do processo social.  

A publicação tem um inquieto projeto editorial pensado pela jornalista e performer Maria Fernanda Vomero, em diálogo com o grupo. A caixa com quatro cadernos, cada um com capa dupla, mimetiza a prática da deriva intencionada que fez a história do grupo nesta década. A iconografia também está lá, em conversa com o texto e as bonitas ilustrações de Adriane Bertini (ficha técnica ao final). A SP Escola de teatro, através do selo editorial Lucias, entra como instituição parceira. Produz o e-book, promove o lançamento e a distribuição dos exemplares para universidades, escolas e público estratégico.

Capas dos “cadernos”: 10 anos

Convidamos A Digna para uma breve entrevista. Responderam, coletivamente: Ana Vitória Bella, Helena Cardoso e Victor Nóvoa.

CENA ABERTAA Digna teve uma preocupação muito evidente nestes anos, a de fazer o diálogo crítico com a cidade. Um diálogo não genérico e sim focado em questões como o direito aos espaços e à moradia, bem como a necessidade de inventarmos futuros para o viver em sociedade. Nessas bases, como vocês avaliam a trajetória agora, retrospectivamente, no panorama teatral de São Paulo?

A DignaEm nossas proposições cênicas trouxemos histórias ficcionais que ressoam vivências reais nossas e de muitos outr_s agentes da cidade, sempre na tentativa de deixar em primeiro plano as consequências (quase sempre nefastas, tanto para o indivíduo quanto para o coletivo) das relações de poder que compõem São Paulo. O amálgama intencional das personagens ficcionais com os viventes da cidade (transeuntes, trabalhadores, moradores, pessoas em situação de rua) sempre teve como objetivo central a ampliação do olhar do espectador para as microrrelações que compõem a cidade – sobretudo nos experimentos cênicos “Convescotes” e nos espetáculos “Entre Vãos” e “Estilhaços de janela fervem no céu da minha boca”. Este convite ao olhar atento e ampliado para as relações de poder também tem sido central em nossas ações pedagógicas, sejam oficinas, rodas de conversa ou trocas com outros coletivos. Nossas escolhas estéticas e éticas se sintonizam com outros coletivos que também propõem o diálogo direto com a cidade e por isso convidamos muitos desses artistas para compor conosco coletivos “temporários” de criação a cada trabalho. Cada experimento é o resultado daquele encontro único de artistas, mas todos seguem uma mesma trilha que estamos abrindo desde 2010.

A Companhia é pautada por uma poética da experimentação. Do ponto de vista da produção é um trabalho difícil de ser sustentado sem algum tipo de subvenção. Falem um pouco sobre o papel das políticas públicas de apoio à cena, para o grupo.

O teatro de grupo faz um trabalho continuado de pesquisa e precisa de políticas públicas de cultura que pensem a arte como uma rede de ações que colaboram com a construção de uma sociedade mais plural, que tenha acesso e produza as mais distintas linguagens artísticas. Esse tipo de trabalho que fazemos não responde ao tempo do mercado; ele parte de outras urgências e se contrapõe a uma racionalidade de desempenho e de eficiência. Ao mesmo tempo, temos total consciência de que o uso de verba pública deve ser feito com responsabilidade e não  criar uma trincheira ensimesmada. Ele deve abrir espaço para o diálogo com nosso tempo e nosso território de ação. Por isso, nosso trabalho se dá pensando na elaboração de uma pesquisa que não faça concessão de linguagem para o dito mercado, mas que crie uma troca de experiências com públicos de diversos espaços da cidade.

Diante da pandemia e da guerra cultural como política de Estado, como  veem o futuro próximo do teatro e da Companhia? Depois de “Estilhaços”…. vocês têm planos para logo mais?

Em nosso livro, no caderno “Rotas Vazantes”, dissemos que não nos arriscamos a tecer qualquer conjectura sobre como será o futuro próximo do teatro, porque haverá tantos teatros quanto artistas que o queiram fazer- e isso é o poderoso em nossa arte. Em que época grande parte do teatro não lutou contra tantas adversidades para se manter de pé? O que podemos afirmar é que vamos seguir em movimento coletivo de pesquisa e que continuaremos abrindo vãos de sobrevivência e de luta. Acabamos de realizar, em meio a uma pandemia, o fechamento de uma pesquisa de nove anos que ainda está em carne viva em nosso corpo. Vamos nos reunir, vivenciar essas experiências sem o tempo do mercado e sentir que caminhos nossas urgências atuais nos levam. Nosso livro foi fundamental nesse olhar sobre a nossa trajetória, pois ele nos ajudou a ver coisas que não tínhamos percebido no calor do percurso, da vida.

Núcleo artístico: dramaturgias cruzam ficção e documento

A Digna – 10 anos

Lançamento de livro (distribuição gratuita, um exemplar por leitor)

SP Escola de Teatro – Praça Roosevelt, 210, Bela Vista – São Paulo

04 de Fevereiro, 19h

Núcleo A Digna: Ana Vitória Bella, Helena Cardoso e Victor Nóvoa

Projeto editorial, entrevistas e redação: Maria Fernanda Vomero (com supervisão da Companhia)

Projeto gráfico e diagramação: Ana Carolina Mazzei e Helio Albano (Vertente Design)

Ilustrações: Adriane Bertini

Preparação e revisão de texto: Livia Lisbôa

Produção: Catarina Milani e Lucas França

Apoio: SP Escola de Teatro (selo Lucias) e Associação dos artistas amigos da Praça (Adaap)

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