Crítica a partir do espetáculo Nossos Ossos, da Cia da Revista
Por Rodrigo Alves do Nascimento
Sair de sua antiga vida em busca de melhores oportunidades, em busca de um amor que partiu. Encontrar no novo solo dificuldades tão ou mais ásperas, perceber-se sozinho e saber que talvez nenhum retorno verdadeiro seja mais possível. Falar de amores no limite entre o embrutecimento e a libertação; de encontros entre a entrega honesta e o beijo interesseiro, ao mesmo tempo que se descobre que a jornada mais dura não é a que se dá em busca do outro, mas aquela que implica um enfrentamento de si. Nossos Ossos, espetáculo da Cia da Revista, dirigido por Kleber Montanheiro, se propõe a enfrentar tantos movimentos, mudanças e impasses com o mérito de não resultar em uma visão complacente ou cética do mundo.
A Cia da Revista começa agora a proposta de uma trilogia que conecta Pernambuco e São Paulo. A equipe tem origens que transitam entre os dois estados, mas não só: a própria trama baseada no primeiro romance do pernambucano Marcelino Freire se dá nesse mesmo trânsito. Nessa rota de migrações, por mais que haja sonhos e expectativas, a dureza das desigualdades que forçam as mudanças não perdoa idealizações. Por isso, logo de início, no espaço pequeno e íntimo da Cia da Revista somos recebidos pelos olhares lânguidos e interesseiros de garotos de programa. Tudo parece pedir nossa entrega para uma trama que não é feita de romances adocicados, mas sim de inusitadas afrontas: o famoso dramaturgo Heleno se propõe a levar o corpo do jovem michê e antigo amante Cícero até Poço do Boi, no interior de Pernambuco. Enquanto arranja a partida, revisa sua trajetória desde a infância no sertão até a capital paulistana, onde conquista o prestígio como escritor. Tudo sustentado pela atuação ágil e precisa de Vitor Vieira (Heleno), que transita entre situações, tempos e afetos sutil e poeticamente.
Recortada e feita dessas zonas de clareza e escuridão, na dramaturgia de Daniel Veiga logo se percebe que seguir a pista do assassino do “boy” morto é inútil. As cenas do centro escuro de São Paulo, com seus prostíbulos e becos, parece sugerir uma jornada investigativa, com ares de trama policial. Toda a encenação joga com esses recursos de escuridão e de morte: seja na pasta d’água que dá ao rosto das personagens um tom de fantasmagoria, seja no desenho de luz de Gabriele Souza que projeta nos espaços um jogo de sombras que desaparece na noite.
Mas o nó de interesse é outro, já que qualquer descoberta se mostra logo efêmera naquele labirinto em que cada um diz pouco e não diz tudo. O gesto (abnegado, culpado?) de levar o corpo do michê-amante de volta para casa é, na verdade, uma jornada de autoconhecimento. Isso porque o corpo ainda jovem forjado pela migração, pelas carícias quebradas, pelos interesses passageiros e pelas opressões de classe é também o corpo do próprio dramaturgo Heleno. Foram amantes, mas são sobretudo irmãos nos ossos e na matéria que os constitui. E encontrar-se não é simples. Assim, a montagem de veio épico costura em cena quadros ágeis e fragmentados da vida do protagonista. Materializam-se em imagens velozes as lembranças que vão e vêm, reproduzindo não só o jogo inconstante e imprevisível da memória involuntária, mas também a subjetividade partida no narrador-protagonista. Um sujeito cindido que pôde, em meio aos dilacerados, olhar com um pouco de delicadeza para o mundo e para si.
Essa perspectiva faz com que Nossos Ossos não seja o diário de uma personagem condescendente consigo mesma ou embrutecida pela realidade. Fetichizar ou apenar-se da própria miséria também conspurca e destrói. Nessa chave, a direção de Montanheiro prefere a síntese contraditória de elementos mais do que a apresentação de uma imagem definitiva. Mas principalmente: arranca um lirismo de onde só parece haver frieza, abandono e morte. Não à toa, todo o espetáculo é entrecortado pelas músicas vibrantes de Isabela Moraes e pela presença imponente da pernambucana Aivan, que ocupa a cena com sua voz melancólica e profunda. Costurada musicalmente, a cena é povoada de momentos de suspensão típicos da poesia, que rompem o fluxo épico da narrativa bruta e nos transportam para momentos de respiro nos quais ainda há espaço para o sonho e o desejo.
Tal combinação também orienta o figurino de Marcos Valadão, que mescla a fantasmagoria dos rostos pálidos da metrópole com detalhes delicados do couro e da renda pernambucana. A cenografia do próprio Montanheiro multiplica dentro do mesmo espaço miúdo as alcovas e ruas escuras de São Paulo com os quintais amplos do sertão: são arames escurecidos (cercas ou grades, não importa) que dividem o espaço com objetos da infância e com um grande coração vermelho que sobe e desce, pulsante. Combinações ambivalentes, que não se propõem a resolver algum impasse em cena, pois as escolhas feitas pela personagem ao longo de sua trajetória não são aquelas dos roteiros fáceis das pessoas formadas nos privilégios de classe: interessaram os sujeitos desviantes, os desejos proibidos e a rebeldia com a tradição. Nesse mundo sem modelos prontos, os encontros e as descobertas doem, mas parecem vibrar mais.
No olho do furacão, nos trânsitos que fogem aos scripts, em meio a pessoas que o sistema insiste em querer apagar, o dramaturgo Heleno encontra seu material de literatura e de vida. Novas formas de amor e delicadezas inesperadas se tornam ali resistência à violência do mundo e ao apagamento daqueles que a norma insiste em querer destruir. Mesmo com tanta morte ao redor, há a possibilidade da poesia. Daí a força desse espetáculo a um só tempo tão duro e pungente que a Cia da Revista soube tão delicadamente produzir.
***
Serviço:
Temporada: De 15 de janeiro a 13 de fevereiro
Duração: 70 minutos
Faixa etária: a partir de 14 anos
Lotação: 84 lugares
Entrada: mediante apresentação de carteirinha de vacinação
Valor dos Ingressos R$ 40
Quando: Sábados às 21h30 e domingos às 19h.
Ficha técnica:
Do romance de Marcelino Freire. Adaptação: Daniel Veiga. Direção e cenografia: Kleber Montanheiro. Figurinos: Marcos Valadão. Desenho de luz: Gabriele Souza. Direção Musical e arranjos: Marco França. Músicas Originais: Isabela Moraes. Assistente de Direção: Gabrielle Britto. Elenco: Vitor Vieira, Aivan, Evas Carretero, Demian Pinto, João Victor Silva e Edu Rosa. Costureira: Salomé Abdala. Máscara: Franklin Almeida. Direção de Cenotecnia: Evas Carretero. Serralheiro: Airton Lemos. Assistente de Cenografia: Thais Boneville. Microfonista: Eder Sousa. Fotos: Cleber Correa. Visagismo: Louise Helène. Produção: MoviCena Produções. Assessoria de Imprensa: Pombo Correio