Geninha é Maria Eugênia Franco de Sá da Rosa Borges. Nasceu em 21 de Junho, no tumultuado 1922. Enquanto aqui para baixo os artistas marcavam posição no ano da Semana de arte moderna, Recife ganhava aquela que seria reconhecida como “a grande dama do teatro pernambucano”. Na modernidade tardia da nossa cena – ao menos a declarada nos marcos historiográficos oficiais – ela teve passagens no que houve de mais importante, junto a lideranças artísticas centrais. Estreou sob direção de Valdemar de Oliveira na peça Primerose (1941), uma comédia de intriga à la Marivaux. Isso já era o movimento de renovação dos palcos, como o disse Décio de Almeida Prado, amparado nos gêneros “altos”, em que se trazia a literatura dramática inédita para ser montada no Brasil. Geninha estava lá. Em 1944, já no Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP) – grupo e movimento essenciais à configuração da modernidade teatral brasileira – foi dirigida, entre outros, pelos poloneses Ziembinski e Zigmunt Turkow. Na emergência dos autores nacionais teve uma peça escrita especialmente para ela por Ariano Suassuna, O marido domado. Professora de formação, coordenou no final dos anos 1960, a convite do MEC, um projeto pioneiro para a teatralização de conteúdos pedagógicos através do rádio, meio em que também atuou. Além da trajetória no teatro, fez TV e cinema, com cineastas como Tizuka Yamazaki e Lirio Ferreira.
Entre os presentes na comemoração de seus cem anos, a atriz ganha hoje esta belíssima prosa poética, inédita, do escritor Marcelino Freire. O CENA ABERTA publica com exclusividade. Conterrâneo da homenageada, Marcelino refaz o tecido da memória e comenta em terna narrativa sobre como Geninha foi fundamental no seu encontro e paixão pelo teatro, e para várias gerações da cena pernambucana.
ROSA DA TERRA – Uma homenagem aos 100 anos da atriz Geninha da Rosa Borges
Por Marcelino Freire
Uma atriz não nasce.
Dá-se a luz.
É um foco que vem de um tempo primitivo.
Ancestral é o movimento que vem vindo. Cada onda do mar uma vez me disseram: é um artista que surge.
Para a ação contínua do vento. O sopro da criação. Um oceano único desde sempre. Um corpo condutor.
Penso assim quando penso em atrizes feito Geninha da Rosa Borges.
Eu não me lembro quando a vi pela primeira vez. Não há a primeira vez. Ela sempre esteve lá. Está. Estará.
É uma pedra, uma flor, uma rosa mística.
Âmbar báltico.
Mas vamos lá: eu era um garoto periférico, nascido em Sertânia, Pernambuco. E recém-chegado ao Recife.
A família veio de Paulo Afonso, na Bahia. No bairro de Água Fria fui estudar na Escola Professor Alfredo Freyre.
Passeando uma vez pelos corredores da escola li em uma plaqueta: “aulas de teatro”.
Não sabia bem o que era. Guiado por uma voz talvez, me aproximei da sala escondida ao fim do corredor. Em pé estava a atriz Ilza Cavalcanti.
Entre, me disse.
Uma convocação ao mistério. Adentrar uma caverna milenar. Bater a cabeça por debaixo da água de uma cachoeira. Uma fonte. Na outra semana, Ilza já me deu um papel para fazer: o de um espantalho. E era tudo tão precário: uma roupa feita de capins. Um chapéu de pobre palha.
Ali segui por toda uma infância.
Escrevi meus primeiros textos. Ilza incentivava. Dava-me livros, me convidava para assistir a seus espetáculos.
Fui a uma apresentação de “Viva o Cordão Encarnado”. A professora em cena era uma outra pessoa. E a cumplicidade dos afetos entre os atores e atrizes. A peça inaugurava um nascimento. Eu estava em contato com trabalhadores do fogo.
Ninguém morria de verdade.
Crepitavam-se.
Quis aquela chama perpetuamente.
Aos 14 anos escrevi um texto chamado “A Lua-de-Mel”. Tão fraco, tão infantilizado. O que eu entendia de sexo? Uma comédia sem graça e sem profundidade. Mas Ilza gostava de ver um pavio se acender. Valorizava a faísca que saía da fissura das rochas escondidas.
Era como se vislumbrasse uma palavra que ainda, por mim, não havia sido escrita. Avisou-me que o texto “A Lua-de-Mel” faria parte de uma roda de leitura a acontecer na Casa de Cultura do Recife. O evento reuniria jovens dramaturgos e dramaturgas de escolas públicas. Arregimentou o ator Rubem Rocha Filho e a atriz Isa Fernandes para o papel do casal. E me levou para assistir ao ritual.
Geninha era a organizadora do encontro.
Uma mulher alta, cheia de anéis, o cabelo fazia um cocorete egípcio, imponente.
Quem é o autor deste texto?
Ilza pediu que eu me levantasse. Quase desaparecido entre as poltronas. Nem sabia que palavras eu havia colocado no papel. Geninha fez umas críticas certeiras. Perguntou quais dramaturgias eu estava lendo. Deu tempo de eu citar, timidamente, a poesia (dramática) de Manuel Bandeira. Maria Clara Machado, falei. Solano Trindade de soslaio…
Ilza saiu em minha defesa.
Para dizer de minha pouca idade e que eu teria uma vida inteira de leituras.
Comece já.
Duas atrizes em uma arena de possibilidades espetacular.
O teatro que eu fiz durante essa fase me fez assistir a festivais, estreias. E a própria Geninha vi em cena no palco do teatro Valdemar de Oliveira. A peça: “Um Sábado em 30”. Inesquecível igualmente a atriz Dinah de Oliveira.
Vi João Falcão em começo de carreira.
Bruno Garcia, Lúcia Machado, Tuca Andrada, Magdale Alves. Paulinho Mafe era dessa geração.
Ele nos visitou durante uns ensaios. Ator e produtor que nos apareceu para continuar os estudos gestuais, as posturas vocais, a esperança condutora de qualquer arte à parte.
Surgiu o grupo Haja Teatro.
Geninha voltou a cruzar o meu caminho quando ela era diretora do Teatro de Santa Isabel.
Paulinho conseguiu que a gente ocupasse as salas de ensaio de lá. E Geninha chegava ao teatro sempre carregada de almofadas, papeis, pacotes, tapetes.
Aqui é a minha casa.
Se o governo demorava em destinar verbas, Geninha enfeitava os corredores com seus instrumentos caseiros. Não tinha, então, diferença do teatro que eu fazia na escola, para onde eu levava cadeira de balanço do meu quintal, espelho de penteadeira própria, adereços improvisados em cima da hora.
No Santa Isabel fiz vários cursos para aprender a dizer poesia, a respirar entre os parágrafos, a não engolir as frases finais, a movimentar o corpo físico.
Fizemos um recital no palco.
Geninha estava lá para assistir. Em seguida, ela me chamou até a sala da diretoria. Gostaria que eu fizesse parte de um espetáculo ao ar livre. Uma via crúcis. A partir de um poema de Maria do Carmo Barreto Campello de Melo e de Bartyra Soares.
No elenco, entre outros convidados, o mestre Rubem Rocha Filho.
Mais uma vez Geninha levava castiçais de seus altares. Eu e o amigo de cena Pedro Carlos de Vasconcellos ajudávamos a atriz a encher o carro de velas, tecidos, matracas para os estalidos secos que repercutiriam, místicos, à Praça da Jaqueira.
Teatro vivo.
Redivivo.
Fizemos uma confraternização em seu sítio. Ela aproveitou para mostrar trechos do texto “Yerma” de Federico García Lorca, um dos solilóquios da mulher que vive o drama de não poder conceber um filho.
Das entranhas do ventre a fera.
Até hoje guardo aquela luz amarela, batendo nos olhos da grande dama do teatro pernambucano, ao entardecer.
Entre as plantas, como se fosse uma clareira, Geninha levantou um teatro natural, ali gestado, é bem possível, entre lagartos, fósseis de conchas de moluscos marinhos.
A arrebentação de mais ondas.
Acredito.
Estreitamos nossos contatos e Geninha foi uma das primeiras pessoas a me telefonarem para desejar sucesso em São Paulo, para onde eu vim no ano de 1991.
Não deixe de ir ao teatro.
Também guardo dela cartas e postais, bordados que ela fazia por cima de umas fotografias e mandava. Sua letra dançarina entre os dedos longos. O olho e o sorriso de um realismo operístico, um raio que funda a energia do sol.
Você é um poeta.
Essa pedra que ela me ajudou a plantar.
Aos vinte anos, aliás, me batizou de Severino. Nos 70 anos de João Cabral de Melo Neto, fez com que eu fosse um dos que leram, na presença do poeta, fragmentos de “Morte e Vida Severina”. Ali, no Teatro do Derby. Fizemos também outras empreitadas no Teatro da Fundação Joaquim Nabuco.
Na Academia Pernambucana de Letras, certa vez, recitou ela mesma uns poemas meus. Afirmados como se fossem profundíssimos seixos, cascalhos por ela arrancados à unha.
Fibrosa.
Penso em Geninha da Rosa Borges feito uma gravura em metal.
Uma pintura na vegetação de Fazenda Nova.
Uma raiz espinhosa.
Um dia quando chove no areal.
Uma gata do deserto.
Rainha que se instaura ao nascer do dia, feito uma teimosia de mãe, uma guerrilheira que carrega o fogo para o carvão, o querosene para a construção do alimento.
Mãe Coragem.
A fonte do improviso.
A mulher atemporal.
A partitura vocal de um sonho.
A própria liberdade em carne viva.
Artistas feito Geninha da Rosa Borges ondulam. Mambembes para dentro, sempre no centro do prólogo mais permanente das origens mais profundas do mundo.
Para que não sejamos os mesmos nem as mesmas, nunca sozinhas nem sozinhos, nós que tivemos a dádiva de encontrar essa Rosa, entre as rosas geradoras, pelo caminho.
MARCELINO FREIRE é escritor. Nasceu em 1967 em Sertânia, Pernambuco. Vive em São Paulo, vindo do Recife, desde 1991. É autor, entre outros, de “Contos Negreiros” (Editora Record, Prêmio Jabuti 2006) e do romance “Nossos Ossos” (Record, Prêmio Machado de Assis 2014). Seus contos são constantemente adaptados para o teatro, com montagens premiadas como “Hospital da Gente” (Grupo Clariô de Teatro, São Paulo), “Angu de Sangue” (Coletivo Angu de Teatro, Recife) e “BaléRalé” (Teatro de Extremos, Rio de Janeiro). Suas obras foram publicadas também em Portugal, México, Argentina, França, Colômbia e Itália. O autor reconhece o teatro como uma de suas principais influências literárias.