Por Kil Abreu
“Estamos no entremeio entre o rio e a rua, o mato e o concreto. Estamos entre o iPhone e a cura da dor de garganta com óleo de andiroba”, diz o diretor Otávio Oscar, do grupo Frêmito teatro, que está em cartaz em São Paulo com dois espetáculos, e realiza ainda um encontro e uma oficina, no Sesc Ipiranga.
Grupos do Norte do país são raríssimos por aqui. Há um tanto de coisas, um círculo de motivos que vão de questões logísticas ao evidente desinteresse de críticos, curadorias e programadores. Todos temos enorme apreço pela Amazônia, mas em geral trata-se de uma aderência pontual, em torno das justas questões relacionadas diretamente à tragédia do desmatamento, à causa indígena, ao sacrifício das vidas engolidas na militância ambiental por lá. Não há muita mobilização para conhecer e criar as condições para vermos aqui, por exemplo, os teatros da floresta. Há dificuldades de orem financeira, e não são irrelevantes. Artistas não conseguem viajar por conta própria, ainda menos neste momento de absoluto abandono do fomento público às artes, sob Bolsonaro. Por outro lado, é caro para as instituições mobilizar a vinda de um grupo de lá. É mais em conta trazer algum da Argentina que do Pará, do Amazonas. Por fim, e também como consequência do ciclo, poucas acabam sendo as referências visíveis. O teatro da Amazônia é um desconhecido no Sudeste.
É nessa contramão que o Frêmito mostra agora o seu trabalho. Faz diferença que um dos seus diretores more aqui e que uma dramaturga conhecida, Ave Terrena, esteja no intercâmbio artístico que gerou um dos espetáculos. São pontes, e festejemos que elas existam e estendam a outras possibilidades adiante.
Nesta conversa com Otávio Oscar repercutimos os dois espetáculos e a inspiradora proposta formativa do grupo.
A primeira montagem, Lugar da chuva, tem o antecedente do encontro entre Oscar, já morando em São Paulo, e o ator Wellington Dias, também amapaense, que estava na Bélgica. Decidiram que queriam falar sobre o lugar de origem. Foram premiados em uma das edições do Programa de ação cultural de São Paulo (Proac), na categoria “primeiras obras”. No plano de trabalho estava o intercâmbio artístico do qual resultaria a criação do espetáculo. Convidaram então, para uma residência de três semanas em Macapá, a dramaturga Ave Terrena e a videoartista Luciana Ramin. Fizeram percursos pela cidade, ou o que Oscar chama de processo para uma “dramaturgia cartográfica”. Cada local visitado representaria uma ilha. Entre estes, por exemplo, a Fortaleza de São José, ponto histórico e hoje turístico da cidade, forte construído com mão de obra africana e indígena na segunda metade do século XVIII. Do percurso também fizeram parte as áreas de ocupação por palafitas e os trapiches do porto, onde acontece o comércio madeireiro. O espetáculo é uma deriva poética em torno desses símbolos geopolíticos e da paisagem humana neles.
A descoberta do rio das Amazonas, o trabalho seguinte, começou a ser pensado em 2019. Aconteceria em intercâmbio com o grupo equatoriano El Derrumbe teatral. Alguns parentescos estavam dados. Quito e Macapá são cidades na linha do Equador. “Discutimos sobre os processos que nos assemelhavam”, diz o diretor. “Francisco Orellana foi o primeiro governador de Quito e também esteve à frente da primeira expedição pelo Rio Amazonas, até o Pará. Nos interessava discutir entre outras coisas a colonização”. No entanto, o projeto não avançou, foi impedido pela pandemia. O Frêmito seguiu, investigou tempos e espaços. Imaginou, misturando documento e ficção, o processo de colonização que vai de 1542 até 2050. Mudaram condições e circunstâncias mas a exploração segue seu curso, lembra ele. “A exploração da floresta, dos minérios, está aí. A pergunta que nos fizemos foi: quais eram e quais são as formas atuais da colonialidade e o que podemos pensar sobre a projeção do futuro?”.
A abordagem, porém, está fora da expectativa geral se considerarmos um grupo que vem da Amazônia – o que não deixa de ser uma maneira de fugir ao enquadramento. Em termos de gênero o grupo optou pela aproximação à comédia. É um espetáculo de esquetes, que se por um lado não responde à tipificação regional, por outro coloca a companhia em diálogo com a cena local, onde segundo Oscar há um gosto pela comédia popular. “Neste espetáculo vamos para o veneno, o sarcasmo, a ironia. É uma tentativa de dar uma bagunçada na herança europeia, que também é referência para nós”.
Militância conjunta, técnica e poética
Sobre apresentar os dois trabalhos em São Paulo, ele considera que é algo vindo com uma abertura forjada coletivamente: “Para estar em São Paulo há dificuldades logísticas e simbólicas. Mas nós estamos chegando em um bom momento, junto com um movimento que é maior que nós e que inclui o teatro negro, o teatro de artistas nordestinos. Estamos juntos, demandando essa diversidade nas programações e curadorias. Quem está construindo essa militância somos todos nós”.
Além dos dois espetáculos o grupo desenvolve ainda um encontro e uma oficina, com temas muito sugestivos: “Dramaturgia cartográfica” (encontro público, já ocorrido), e “O ator fluvial” (29 e 30 de Junho). Sobre estas proposições – que são ao mesmo tempo poéticas e técnicas -, o diretor explica: “Na verdade nós não buscamos os conceitos, eles nos encontraram. A experiência se oferece. As ideias de uma dramaturgia assim e de um ator fluvial vêm dela. Da inspiração nos griôs e contadores de história da Amazônia, do corpo do rio, e de como as ilhas se organizam. Não há linearidade, há fluência e adaptabilidade. Por exemplo, da natureza que se cruza com a cidade. Fluxos que seguem, encontram sedimentos, se refazem nos obstáculos, cruzam geografias, inventam caminhos inusitados. Moldam-se e são moldados pela paisagem”.
Em outro aspecto, Oscar traça outro bonito paralelo entre criação, sociabilidade e presença: “o ator, a atriz fluvial é hospitaleiro, é alguém de braços abertos e que gosta do seu olho no olho do outro, da outra, assim como é na realidade a pessoa ribeirinha”. Atitudes diante do teatro e da vida que certamente procuram a técnica que caminhe de mãos dadas com uma ética da invenção.
O projeto do Frêmito teatro foi acolhido pelo Sesc São Paulo e acontece na unidade do Sesc Ipiranga.
SERVIÇO
Lugar da Chuva (Espetáculo)
De 10 a 19/06, sextas e sábados, às 21h, domingos às 18h
Dia 19 de junho, domingo, às 18h, a sessão contará com intérprete de libras
Classificação: 14 anos
Duração: 60 minutos
Realização: Frêmito Teatro (AP) e Agrupamento Cynétiko (SP)
Atores: Raphael Brito e Wellington Dias
Direção e Produção: Otávio Oscar
Dramaturgia: Ave Terrena
Direção de Arte: Daniele Desierrê
Videoartista: Luciana Ramin
A Descoberta do Rio das Amazonas
De 24/06 a 03/06, sextas e sábados, às 21h, domingos às 18h
Dia 03 de julho, domingo, às 18h, a sessão contará com intérprete de libras
Classificação: 14 anos
Duração: 60 minutos
Criação: Frêmito Teatro
Direção: Otávio Oscar
Atores: Raphael Brito e Wellington Dias
Cenografia: Paulo Rocha
Figurino: Diemisom Sfair e Luís Garcia
Iluminação: Luana Gouveia
Videoartista: Luciana Ramin
Sonoplastia: Otto Ramos
Produção Executiva (SP): Maíra Magnoler
O Ator Fluvial (Oficina)
Dias 29 e 30/06, quarta e quinta-feira, às 19h30
Classificação:14 anos
Duração: 120 minutos
Gratuito
ONDE: Sesc Ipiranga – Rua Bom Pastor, 822 – Ipiranga – São Paulo SP | (11) 3340-2000