A tragédia do capital

Cauê Gouveia no cenário de Renato Bolelli Rebouças. Foto: Carlos Canhameiro

Kil Abreu

AGAMENON – Voltei do Supermercado e dei uma surra no meu filho (2004), peça do dramaturgo argentino Rodrigo García, é chamada na encenação brasileira de Agamenon 12h. O título não é gratuito. Indica aventura estética  que envolve uma equipe grande de artistas, entre eles e elas doze intérpretes que criaram doze re-dramaturgias cênicas com duração de uma hora cada, a partir do texto original. Como na tragédia clássica, com a qual articula similaridades, o espetáculo atravessa o ciclo solar, como diziam os antigos, e avança pela noite para contar sobre o capital sequestrando a vida.

“Quando pensei em fazer mais uma peça de doze horas não dimensionei bem o tamanho do esforço”, diz o diretor Carlos Canhameiro. “Doze peças que só não são completamente diferentes porque acontecem no mesmo cenário, com quase o mesmo figurino, a partir do mesmo texto. Não havia previsto ensaiar quase doze horas por dia, nem que teria doze faixas musicais inéditas para cada hora da peça, nem luz para cada cena, nem…”. 

O público pode entrar, sair, voltar se quiser, como quem visita um shopping, uma galeria de comércio popular. A extensão temporal fora da ordem não é acidental. Mimetiza o processo de alienação cada vez mais distendido no mundo do trabalho. Dramatiza o tempo útil, tornado inútil, de seres humanos cada vez mais sequestrados nas malhas da produção, administradas sob mentiras a respeito da felicidade. A inspiração imediata do projeto, conta o diretor, veio com a reforma trabalhista de 2017, que entre outras medidas flexibilizou a carga de trabalho até o limite, agora legal, das jornadas de doze horas. Também legitimou o trabalho avulso, enxugou direitos e enfraqueceu os sindicatos ao promover à qualidade de Lei a “negociação” individual entre empregados e patrões, como se de fato se tratasse de uma relação de poder simétrica entre os donos das Casas Bahia, da Volkswagen, e o vendedor de loja, o operário que guia a máquina de encaixe.  Ainda que o texto de García não se refira especificamente à questão do trabalho, a relação não é fortuita. Trata-se, em qualquer caso, da reificação da existência livre para a geração do lucro.

É um tema que ganha representação na cenografia pensada por Renato Bolelli Rebouças. Nela mimetiza-se uma lojinha de camelô que poderia estar no Centro de São Paulo tanto quanto em uma periferia de Recife ou de Taiwan. Pequenas futilidades, delicadezas descartáveis, falseamentos descarados no deserto do real. Dos detalhes infinitos das minibugigangas, ao entorno das estruturas, o cenógrafo chama a atenção para a paisagem que amplifica o sentimento diante daquilo que não sabemos, enfim, se “ainda é construção ou já é ruína”.

Em cena os artistas apresentam-se em revezamento, como no esquema de produção fordista que funda a automatização na indústria. Os ensaios foram feitos separadamente, de maneira que não conhecem o trabalho uns dos outros, umas das outras. Em compensação, a mimética da produção em série encontra resposta em uma tarefa que, embora comum, estimula um desvio importante e dribla o sistema: cada ator, cada atriz foi chamado a criar a sua própria versão da peça. Ainda que a narrativa central permaneça, surgem outras textualidades e sobretudo diferentes teatralidades e visadas sobre o texto.

A encenação em looping de uma mesma célula dramatúrgica já havia sido experimentada por Carlos Canhameiro (com André Capuano e Daniel Gonzalez) em outra montagem: Vigília (2013), de Cassio Pires. O espetáculo, também interpretado ininterruptamente por doze horas, era feito por três atores. Mas ali o mote estava dado: tratava-se de um sujeito que não conseguia dormir e a relação com o tempo distendido dava-se em uma cena compartilhada coletivamente. Agora o elenco é levado a alienar-se do trabalho do outro. Na metalinguística, a montagem comenta a si mesma ao colocar a cena como espaço de representação simbólica da barbárie. Para Canhameiro essa estrutura tende a desfazer da aura que ainda sobrevive no teatro – em tese resistente à massificação e tributário de certa artesania – quando as contradições do modo de produção são confrontadas: “Nós estamos vinculados, anunciados no mercado como força de trabalho mas as forças políticas não reconhecem o trabalho artístico como tal. O período da pandemia no Brasil amplificou isso, mostrou o quanto somos desamparados do ponto de vista trabalhista”.

De fato, não é preciso grande esforço para perceber o limbo em que vivem os artistas, que precisaram articular uma mobilização envolvendo entidades e as alas políticas mais progressistas do Congresso Nacional para poder arrancar do Estado alguns instrumentos “emergenciais” de proteção, que não garantem futuro. Canhameiro lembra o filósofo Paulo Arantes, a propósito do sistema que não só alcança os artistas como os coloca como exceção da exceção, qual seja, a de trabalhadores subprecarizados: “É uma vida besta onde pastamos mansamente entre serviços e mercadorias”.

Nilcéia Vicente: o desencantado mundo da mercadoria. Foto: Mariana Chama

Rapsódia, dinheiro, existência

É desta forma que o espetáculo investiga o texto de García por fora e por dentro. Pela sua fábula, doze vezes representada, e por este plano subliminar que a leva para outras possibilidades de fruição.

Ir ao supermercado e comprar três carrinhos de coisas, comidas inúteis. Voltar para casa, encontrar a família, pegar a estrada, “ir por aí”, ouvir os grilos, ver as estrelas, ir ao restaurante. Parecem coisas pacíficas. A questão é que em Rodrigo García as repetições de uma vida regular são relatadas com o sentimento da revolta íntima de quem percebe a mediocridade da vida vivída. “Sair e se perder por aí, dizem. É mentira. Sempre se sai do mesmo lugar com destino aos mesmos lugares”.

O autor cozinha o paraíso anunciado da felicidade através do consumo em um panelão colocado em fogo alto. A coisa ferve rápido, e fede. Ao ouvi-lo intuímos que são falas de vários personagens. Há o protagonismo de um deles, este sujeito sem nome que, de fato, sai para fazer compras e volta para surrar o filho. E há o filho, a mulher e outras pessoas que falam. Mas no fundo é uma dialógica deliberadamente falseada. Trata-se na verdade de uma única fala, provavelmente a voz do próprio autor, desdobrada em retórica grotesca. Rica em verbos que, no entanto, denunciam o nada da ação diante de um mecanismo inalcançável, que lhe escapa. A violenta imaginação política de Rodrigo García esforça-se para levar a banalidade às suas imagens máximas. Representa o enfrentamento à paralisia na forma de um inconsciente a céu aberto. A ação dramática e o personagem são levados a um esquema mínimo, basicamente o de uma elocução atormentada. A situação não cresce porque já começa no ponto mais alto, no paroxismo da sua denúncia.

Há referências que podem parecer estranhas aos dias atuais. A peça fala em Bill Clinton, Mônica Lewinsky. Mas pouco importa porque os acontecimentos e escândalos sucedem-se na superfície, enquanto o sistema que os move segue inalterado. Talvez por isso a tradução e adaptação (de Canhameiro e Chico Lima) tenha optado por não atualizar as referências, de início dos anos 2000, quando a obra foi escrita. Bin Laden, Lady Di, Saddam Russein, Berlusconi, se já não eram, à época, passam a ser agora parte do acúmulo informacional que a dramaturgia comporta sem problema junto a funcionários do baixo escalão de uma loja de fast-food. Tudo passa a fazer parte de uma mesma paisagem humana composta por gente com ou sem poder resgatada da lixeira da história e reposta agora no rol de enumerações sem valia, a reafirmar o vazio, ao lado de tubos de ketchup e caixinhas de frango frito.

É uma peça que vem na tradição das rapsódias contemporâneas, mas já no seu capítulo avançado, aquele em que o discurso assume quase que totalmente o cinismo, no pensamento tanto quanto na forma de apresentá-lo, de colocá-lo em estado de jogo e fruição. É, em síntese, uma narrativa íntima do cansaço em busca de um horizonte inexistente. Um relato que esperneia o mal-estar do mundo na boca dentada do capital. Nesse sentido está já definitivamente distanciada das formas de romancização da cena que ainda fantasiavam uma sociabilidade assentada em laços comunitários, em expectativas de compartilhamento da experiência como método de agregação social. O texto de García tende mais, pela urgência e desespero, à concisão do conto veloz e a uma regurgitação do veneno consumido em anos de cativeiro. Ou ao retrato de uma cena de tortura da subjetividade pela propaganda. E a vida girando rápido nas superfícies escorregadias do “mercado”, entre promessas de emoções fugazes e futuro barato. 

“Olha como está o quintal!
Falo pro meu filho
E nós, que temos feito para melhorá-lo?
Nada
E você, o que vai fazer pra melhorá-lo?
Nada
Está assim o quintal
porque temos gastado a vida sem fazer nada
Porque temos gastado a vida fazendo
o que nos disseram que era bom fazer”.

Tragédia e horizonte

A ideia de tragédia centra-se no despertencimento, no abandono do homem pelo divino, à própria sorte. Mas o abandono acontece primeiro sob alguma esperança metafísica que está lá. Aqui, porém, a tragédia é tomada como coisa ordinária, a vida afoga-se em ânsias existenciais que não podem nem mesmo contar, na visão material e niilista de Rodrigo García, com algum mínimo contrato com a transcendência.

O crítico galês Raymond Williams, importante pensador vindo da “nova esquerda” inglesa, estudou o trágico após o fim da tragédia clássica.  Ele diz algo que serve perfeitamente tanto à peça como à montagem brasileira apresentada agora: relaciona a tragédia a acontecimentos do âmbito privado, mas sobretudo à cultura e história determinadas. Determinação, no caso, não é algo acidental. E sendo assim, o que determinaria a existência da tragédia, no texto? “A tragédia começou onde estava o dinheiro”, diz o autor. E estende-se com a alienação no mundo do trabalho, nos mostram os artistas que a levam neste momento à cena. Em ambas as frentes trata-se, como explicou Williams, do destroçamento da moral e, com isso, da instalação da crise ética: “A sociedade se constitui da soma dos seus relacionamentos, e quando estes estão perversamente errados, ou quando as pessoas não mais os compreendem, há uma complicada estrutura de culpa e ilusão que é vivenciada em cada setor da experiência, assim como nos mais óbvios pontos de confluência (…) Antes não conseguíamos reconhecer a tragédia como crise social; agora, comumente, não conseguimos reconhecer a crise social como tragédia[1].

A encenação de Agamenon 12h é, assim, o reconhecimento do trágico nos termos que interessam. Se na tragédia antiga o reconhecimento é o ponto da ação em que a consciência toma contato com a realidade presente, por mais sinistra que seja, aqui, no Brasil de hoje, o trabalho é dobrado. A encenação toma para si a tarefa de atualizar a peça de Rodrigo García e oferecer a ela um contexto em que possa ser lida, experimentada. E nos chama a pensar se do meio da dor podemos nós mesmos, nós mesmas, agir como esta consciência à procura de horizonte.

  • O artigo foi escrito a convite da produção do espetáculo e do Sesc Avenida Paulista. A versão original, com depoimentos dos atores e atrizes sobre o processo de criação está aqui: https://www.sescsp.org.br/a-tragedia-do-capital/

Ficha Técnica

Concepção e direção: Carlos Canhameiro

Texto: Rodrigo García

Elenco: Amanda Lyra, Cauê Gouveia, Chico Lima, Danielli Mendes, Eduardo Bordinhon, Janaina Leite, Jorge Neto, José Jardim, Nilcéia Vicente, Mariana Senne, Mercedez Vulcão e Veronica Valenttino

Trilha sonora: Guilherme Marques, Paula Mirhan

Desenho de som: Lilla Stipp

Cenário: Renato Bolelli Rebouças

Iluminação: Daniel Gonzalez

Figurino: Anuro, Cacau Francisco

Fotos: Mariana Chama

Produção: Corpo Rastreado – Gabi Gonçalves

Serviço

Teatro |AGAMENON 12H

Quando: 10 a 27 de agosto de 2022. Quarta a sábado, das 10h às 22h.

Local: Praça – Térreo – Sesc Avenida Paulista – Av. Paulista, 119.

Classificação: 14 anos. 

Duração: 12 horas 

Capacidade: 80 lugares. 

Ingressos: Grátis.

Horário de funcionamento da unidade:  

Terça a sexta, das 10h às 21h30.  

Sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h30.  

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