Vestido de Noiva – um país entre a tragédia e o melodrama

Vestido de Noiva: rigor formal
Foto: Netun_ Lima

Por Kil Abreu

Um dos aspectos mais interessantes colocado pela dramaturgia de Nelson Rodrigues é a dificuldade para enquadrá-la. Este é um traço da sua modernidade. Maior estudioso da obra rodriguiana, Sábato Magaldi propôs a divisão das peças entre psicológicas, míticas e tragédias cariocas. Mas este é um esquema relativo, serve mais como referencial para certas leituras. Quanto a Vestido de Noiva, por exemplo, Nelson considerava que havia escrito uma tragédia e, no entanto, Magaldi a classificou no rol dos textos psicológicos.

Esta não é uma nota lateral se pensarmos que o desenquadramento não está apenas repondo a iconoclastia moderna em termos locais e sim iluminando involuntariamente as dobras da sociabilidade.

Senão, vejamos. Em Vestido de noiva a certa altura da trama Alaíde delira na mesa de cirurgia e refere-se à própria instabilidade psíquica como ‘misturada’: “Tudo está tão embaralhado em minha memória! Misturo coisa que aconteceu e coisa que não aconteceu. Passado com presente. É uma misturada”. A fala indica dois caminhos: o primeiro, é imediato, refere-se ao contexto de ficção da peça e ao estado de alucinação da personagem após o atropelamento. Ela já não sabe se o que acontece à sua volta é situação presente ou projeção do passado.  

O segundo caminho indica que o que ocorre no texto é tradução livre, em chave experimental, dos lances de uma cultura política determinada. Estamos em 1943. Segundo os historiadores, é o ano da nossa tardia virada moderna no teatro, através da montagem desta peça. Se este marco for justo será preciso considerar então os impasses que a nossa modernidade particular enfrenta. E eles estão lá. A peça parece falar subliminarmente  sobre um país que assim como a personagem não superou o pior do passado. E o revive como trauma.  A percepção de uma realidade violenta e embaralhada – transmudada em forma cênica – significa mais que “progresso” artístico, como é sempre anunciado. A formulação estética que faz ver o embaralhamento também denuncia as incongruências do quadro social, extraestético. A peça expõe as condições próprias de uma modernidade que só pode ser vista como fratura. É, no caso, uma condição para a sobrevivência da verossimilhança.

Assim, Em Vestido de noiva, aquilo que o autorchamara de tragédia será levado a lamber não apenas a construção psicológica, como queria Sábato. O texto alcança, por necessidade, o  raio da tragicomédia e do drama nas suas versões de efeito escandaloso. Em termos simples podemos dizer que a equação envolvendo brasilidade e modernidade tinha mais chance de prosperar entre nós matizada pelo farsesco e pelo melodramático em suas reviravoltas bombásticas. Nelson Rodrigues provavelmente é, àquela altura, a representação mais acabada deste processo de decantação da experiência social em forma cênica.

A respeito deste trânsito livre entre as perspectivas dramáticas tumultuadas pelas condições da sociabilidade, o crítico Ismail Xavier faz uma síntese precisa: “Esses traços da experiência (…) incidem sobre a forma de avaliar os gêneros, opondo o que seria um senso moderno do trágico como ‘resistência estoica’ – o suportar dignamente em silêncio – ao que seria a extroversão (no limite da histeria) própria aos lances do melodrama. É esse ‘dizer tudo’ que a cena de Nelson Rodrigues incorpora (…) A tragicomédia se afirma, então, como uma nova forma de qualificar o drama social brasileiro”. 

Grupo Oficcina Multimédia
Foto: Netun_ Lima

ENCENAÇÃO DE FÔLEGO

No espetáculo do grupo mineiro Oficcina Multimédia os saltos entre gêneros está presente, por exemplo, na abordagem paródica dos personagens ligados à imprensa e ao atendimento médico. Os médicos, projetados no telão ao fundo, socorrem Alaíde falando em registro que se aproxima da morbidade grotesca. O grotesco entra sem que se precise abandonar o prosaísmo coloquial. É uma passagem cômica.  Isto não é demérito, ao contrário. Ali a cena parece encontrar-se decididamente com a vocação do texto – a de ser mesmo uma mistura. Uma mistura que fala além de si.

Diante deste quadro a encenação escolhe arquitetar um rigoroso plano visual, que destrincha e exibe com autonomia aquilo que está amalgamado no fundo da peça. Na montagem, aquele fundamento inescapável da ‘bagunça’ aparece contrastado com uma marcação ordenadíssima, simétrica. A cena é medida à régua no espaço, na gestualidade do elenco e mesmo em outros elementos mais fugidios, como a música.  Ione de Medeiros é uma criadora de muita musculatura. Daquelas artistas em quem podemos reconhecer de fato uma percepção estética autoral, uma visão singular do que seja o ofício. Seu apreço pelo trabalho laboratorial é notável. O cuidado com os detalhes, do corte dos figurinos ao ritmo das cenas, justifica o nome do grupo. Trata-se mesmo de uma oficina em que vários meios – técnicos e artísticos – são regidos por um ponto de vista que os irmana.

Um recurso cenográfico importante é a vídeografia. No vídeo a dramaturgia se avoluma com grande efeito plástico e função narrativa orgânica à cena. As projeções ajudam a constituir o que no texto são os conhecidos três planos da ação – o da realidade, o da alucinação e o da memória.  Por sua vez os objetos – mesas, cadeiras, tecidos, velas – dançam no espaço, assim como os corpos. Um bailado sinestésico, etéreo, entre os diferentes tempos, a figurar o inconsciente proibido e a instabilidade mental de Alaíde.

O onirismo vindo do arranjo cênico cobra, entretanto, um preço. Diante de uma peça fragmentada, que ainda hoje interpõe exigências ao olhar, a plateia pode ficar no encantamento e perder a intriga. Perder as curvas do texto não é, a essa altura, um pecado. A cena contemporânea liberalizou-se verticalmente na direção do espetáculo, mais que da literatura dramática. Entretanto, não parece ser este o projeto da companhia. Salvo engano a proposta é fazer uma leitura própria do texto, que deve permanecer à vista.

O trabalho de atores e atrizes é poético e também aeróbico. A poética está na própria escritura cênica. A aeróbica, no empenho físico solicitado. Nesta área há um procedimento que dificulta a compreensão da narrativa:  o rodízio dos papéis pelo elenco é um jogo cênico justo diante do nosso tempo, quando a discussão sobre gêneros libertou a subjetividade do binarismo. Mas aqui o deslocamento dos atores e atrizes entre as personagens torna-se algo de difícil acompanhamento. O fio da meada tende a escapar. Não há norma que impeça qualquer solução teatral. Mas esse aspecto é importante porque trata-se de uma encenação que não pretende estilhaçar Nelson Rodrigues e sim promover a peça inventando uma sintaxe que, livre, não anula a semântica.

Quanto às questões de fundo, o espetáculo do grupo mineiro reafirma – talvez a contrapelo –  que hoje aquele efeito de escândalo está praticamente anulado. Na época da psicanálise a serviço do coaching e da emergência de padrões de comportamento mais desconcertantes que nunca, um triângulo amoroso no seio da classe média em decadência não surpreende. Restam, para aqueles que leem o autor nesta chave, o interesse pela investigação psicanalítica e, no capítulo propriamente artístico, pela observação do pioneirismo dele na criação de uma escrita fresca para aquele momento.

A montagem deve ser comemorada junto com os 45 anos de existência da Oficcina multimédia. O grupo ajuda a compor nestas mais de quatro décadas o panorama resistente da criação teatral no Brasil, que tem na peleja coletiva uma reserva de muita qualidade.

Parte do melhor teatro de grupo tem quase sempre uma liderança criativa bem afirmada. Ione de Medeiros é uma veterana muito importante, com trajetória notável. E é uma artista mulher laborando em um ofício ainda ocupado majoritariamente por homens. Aqui é ela quem chama, no tablado e pelas bordas, um bonito diálogo – agora entre iguais – com o velho Nelson Rodrigues.   

O espetáculo estreou no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, e segue em temporada no CCBB Rio de Janeiro (cf. serviço, abaixo) e Brasília.    

Ione de Medeiros: 40 anos de encenação .
Foto: Gui Machala

VESTIDO DE NOIVA – grupo Oficcina Multimédia

De 11 de outubro a 05 de novembro de 2023

Quarta a sábado, às 19h, e domingo, às 18h

Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB/RJ) – Teatro 2 – Rua Primeiro de Março, 66 – Centro/ Rio de Janeiro

Duração: 90 minutos

Recomendação: 14 anos

FICHA TÉCNICA

Direção, Concepção Cenográfica e Figurino: Ione de Medeiros

Assistência de Direção, Figurino e Preparação Corporal: Jonnatha Horta Fortes

Elenco: Camila Felix, Henrique Torres Mourão, Jonnatha Horta Fortes, Júnio de Carvalho, Priscila Natany e Victor Velloso

Elenco em vídeo: Alana Aquino, Heloisa Mandareli, Henrique Torres Mourão, Hyu Oliveira, Jonnatha Horta Fortes e Thiago Meira

Texto: Nelson Rodrigues (1943)

Criação de luz: Bruno Cerezoli

Coordenação de Montagem de Luz: Piccolo Teatro Meneio

Operação de Luz: Tahyssa Carvalho

Concepção de Trilha Sonora: Francisco Cesar e Ione de Medeiros

Mixagem e finalização de áudio: Henrique Staino | Sem Rumo Projetos Audiovisuais

Operação de Trilha Sonora: Eduardo Shiiti e Francisco Cesar

Vídeo – Concepção e edição: Henrique Torres Mourão e Ione de Medeiros

Finalização de vídeo: Daniel Silva

Citações no vídeo: Performance “Ophelia”, vídeo de Gabriela Greeb

|”Ondina”, performance de Luanna Jimenes, vídeo de Gabriela Greeb

|Coreografia “Tango Queer” – Tango Fem Buenos Aires (Nancy Ramírez y Yuko Artak)

Operação de vídeo: Daniel Silva

Projeto Gráfico: Adriana Peliano

Fotografia: Netun Lima

Assistente de fotografia: Yan Lessa Lema

Assessoria de Imprensa: Paula Catunda

Gerenciamento Financeiro e Prestação de Contas: Roberta Oliveira — MR Consultoria

Produção Local RJ: Delas Cultural – Monique Vaillé

Assistente de Produção: Wil Thadeu

Apresentação e Patrocínio: Banco do Brasil

Realização: Governo Federal

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