Duas histórias e alguns espantos

Débora Falabella e Yara de Novaes em Neste mundo louco, Nesta noite brilhante. Direção de Gabriel Fontes Paiva
Foto: Joao Caldas Fº

Por Kil Abreu

Nas histórias contadas por Silvia Gomez, as personagens quase sempre aparecem sem nome ou identificadas por nomeações impessoais, arrematadas por estados e características peculiares. Entre os seus textos, apenas O céu cinco minutos antes da tempestade mantém a nomeação das personagens. Em Marte, você está aí?, a única personagem com nome é um cão “com patas queimadas” (Marte); os demais são NC, D, J. Em Partida de vôlei à sombra do vulcão, há uma mulher que “gesta um estado de fúria”. Em Mantenha fora do alcance do bebê e Neste mundo louco, nesta noite brilhante não é diferente.

Não é um detalhe fortuito. A parcial ou total desidentificação funciona não como fechamento, mas como abertura. Segue um plano de criação em que a psicologia é recolocada entre o sujeito e o emblema que tende a performar. O personagem como emblema concentra mais que uma psicologia individual.


É ele uma figura que guarda sentidos mais amplos. O que é representado é maior que o signo que representa. As vozes íntimas das Mulheres 1 e 2 em Mantenha fora do alcance do bebê, ou da jovem L e sua fada incerta em Neste mundo louco, nesta noite brilhante, são vozes-coro, simulações já não só de uma trajetória privada, como também de uma condição coletiva. Por isso tendem à alegorização.

São atitudes criativas em uma poética na qual o deslocamento das estruturas que fundam a tradição do teatro dramático desestabiliza outros eixos e articulações. Ação, tempo e espaço também obedecem a padrões próprios. Quanto a isso, Silvia é uma autora em diálogo permanente com a experiência moderna, no sentido de operar com certa iconoclastia. No entanto, nos textos dela, os procedimentos de revisão formal não redundam em esteticismo. A iconoclastia não se exibe, não se apresenta como tal. E, mais importante, não há interesse em dinamitar linhagens e materiais, e sim em desmontar o brinquedo para inventar com suas peças novos artefatos.

Pessoas, situações e paisagens inusitadas, gravuras verbais fora da ordem. Mais que originalidade, são maneiras intransferíveis de arquitetar que configuram as relações interpessoais em um arco que parte quase sempre do ambiente da vida íntima, mas não se limita a ele. Um arco que nas peças deste livro amplia-se até alcançar, em chave lírica e nonsense, o lugar da objetualização dos afetos, mas também da sua paradoxal res-suscitação. Até tocar a violência, mas também a esperança diante do impasse geral. São coisas que vêm de escritos anteriores e ecoam adiante. Estão já bem intuídas, por exemplo, em O céu cinco minutos antes da tempestade e estendem-se a outras peças, como A árvore e Partida de vôlei à sombra do vulcão. Embora cada uma tenha as suas próprias questões de fundo, as recorrências mostram que Silvia constrói uma obra, no sentido ampliado da palavra. É assim que nas dramaturgias deste volume os elementos estruturais da cena tradicional, como personagem, ação, tempo e espaço, são repostos não sob a necessidade de funcionamento recíproco entre eles, e sim por uma lógica que abraça os jogos de linguagem.

Uma parte subliminar dos conflitos tem a ver com formas de sequestro das suas subjetividades. Seja na boca dentada do capital, seja nas armadilhas brutais do patriarcado. Nessas condições, em que a discussão passa o tempo todo pela dificuldade de afirmação do sujeito, a sintaxe do drama, re-formada, instaura uma semântica própria em que o tom é o da ironia lírica. Em Mantenha fora…, o lirismo irônico é represado para explodir no final, como vingança imaginada. Em Neste mundo louco…, ele está dado desde a primeira fala até a última rubrica. Nas duas peças, os tensionamentos e distensões, os enfrentamentos e respiros acontecem dentro de paisagens bem demarcadas, mas construídas como territórios ambivalentes: na fábula que se sustenta inteira como provável delírio trágico ou no encontro entre mulheres que medem comportamentos e atitudes enquanto matilhas de lobos invadem a cidade.

Anapaula Csernik, Jorge Emil,  Diego Dac e Débora Falabella: Mantenha fora do alcance do bebê.
Direção de Eric Lenate. Foto: Leekyung Kim

ESTÁ FICANDO UM POUCO ESTRANHO E…

Em Mantenha fora do alcance do bebê há uma mulher elegante que ouve coisas e outra a quem falta personalidade no vestir. E um lobo amarrado, cativo, em um canto da cena. Um homem entrará depois. As alcateias lá fora. Uma voz imaginada de bebê que ri. A situação é uma entrevista institucional para a adoção de uma criança. “Algo bem vivo, é tudo o que eu quero”, diz a Mulher 1.

A busca por algo bem vivo é mote que caminha para uma solução paradoxal. É desejo que segue em desdobramentos até o ponto de chegada, que coincide com o ponto de mudança. A virada no último momento pode ser vista como dissolução tanto quanto como intensificação da aporia. Pela superfície parece que indica um fechamento. Mas se observarmos pelo vão, que de todo modo continua lá, veremos que a narrativa não se fechou, segue aberta em nós, leitores. Seguimos com ela como quem anda com uma bomba amarrada na cintura.

A procura por algo que vitalize o cotidiano é relatada em listas que são como páginas de manuais improváveis, lembretes de autoajuda, ações autorreferentes enumeradas em papeluchos. Memórias disciplinadas por uma retórica na qual itens ordinários de consumo são justapostos na mesma prateleira onde estão as pessoas e os sentimentos. Uma vida que quanto mais se apresenta veloz, mais se deixa parar e capturar por enquadramentos e pela automutilação. “Essa coisa toda de existir é que corrompe”, diz a personagem. Como disse o sociólogo Francisco de Oliveira, no mundo da mercadoria a pior coisa para o sujeito é não conseguir ser mercadoria. Distopia íntima e involuntária, ser mercadoria é o máximo que a vontade humana, quando rebaixada, pode alcançar. A assimetria entre a velocidade das falas e o vazio do pensamento mostra entre outras coisas as maneiras como, no domínio do afeto- mercadoria, o desejo se apresenta febrilmente não para se afirmar, mas para denunciar as maneiras como é aniquilado.

A automação radical da vida ganha contraponto no plano simbólico. São muitas as imagens. Entretanto, a mais evidente é a do lobo cativo e as alcateias do lado de fora, relatadas como ameaça à cidade. O lobo, os lobos são a um só tempo o ruído filosófico e o mistério pensante da peça. A autora demarca com eles o limite do naturalismo e abre uma porta lateral por onde entra o estranhamento.

Para uma leitura freudiana, o lobo será a sombra do pai. O referente será quase sempre o processo edipiano ao qual essa imagem se vincula. Fora desse circuito de interpretação não são poucas, porém, as reposições que veem a alcateia como princípio da indisciplina e da expansão. A alcateia é a aventura por territórios desconhecidos. Talvez por isso o desejo livre possa ser visto como o bicho que permanece amarrado em um canto da sala. Sem prejuízo a outras fruições, esse parece um caminho produtivo. Faz a mediação, por exemplo, com a canção setentista interpretada por Nina Simone (Ain’t Got No, I Got Life), pedida entre as últimas rubricas. A música é um hino pelos direitos civis da população afroamericana e traz similaridades formais com o texto. A letra, assim como as enumerações que marcam as falas da Mulher 1, é basicamente um discurso em que a condição material e política da pessoa negra é pontuada em frases curtas sobre o que se tem, o que se é, o que se quer. Se essa percepção estiver correta, podemos dizer que a canção assim como as alcateias são contrapontos às existências reificadas. O devir lobo é aquele em que o sujeito volta a ter seus próprios braços, suas próprias mãos, dedos, pernas, fígado, sangue. Em que redescobre a propriedade do seu corpo, cérebro, alma e coração. A peça termina – ou abre-se – com essa produtiva correção da distopia.

A dramaturga Silvia Gomez. Foto: Rodrigo Braga

TRAGÉDIA DO CORPO, INVENÇÃO DA LINGUAGEM

Em Neste mundo louco, nesta noite brilhante a Vigia do KM 23 é uma mulher brasileira com cabelos e pele que “ofuscam a vista”. Uma meia-fada, uma entidade antiga, mas sem poderes mágicos, senão aqueles aprendidos na labuta material das soluções ordinárias que não contam com varinha de condão. Ela é entre outras coisas a consciência presente a lembrar o lastro histórico que vem desde que ocorreu o primeiro episódio de submissão de gênero como instrumento de poder. Na ação da peça sua tarefa é a sororidade, o apoio a mulheres violentadas ali naquele lugar, em meio a uma ressaca geral, mas que, brasileira, tem modos de violência específicos, que duram cinco séculos. Desde que a primeira mulher indígena foi abusada pelo branco europeu em alguma praia do litoral. L é apresentada apenas como “uma jovem brasileira”

O KM 23 é um lugar-limite nessas linhas que – pode-se deduzir – leva à beira de um abismo simbólico. Mas é também um ponto de retorno. Há uma porta fechada, postes queimados e “uma árvore brasileira que desfolha devagar”. Aqui não é difícil perceber que a descrição da paisagem guarda parentesco com outros locais inóspitos em que ocorrem as ações nas peças de Silvia Gomez. Em Mantenha fora do alcance do bebê, a linha que separa vida e morte é traçada em uma repartição onde se reclama ordem e austeridade. Em Marte, você está aí? é “Uma casa antes elegante, agora com paredes escurecidas por incêndio prévios”. E mais: “nela, uma grande janela mostra um ipê-amarelo no jardim, a árvore mais brasileira de todas”. Em Neste mundo louco…, o sentimento de desencanto a partir do lugar ganha dramaticidade quando confrontado com o contorno mágico da narrativa.

Há sirenes de carros da polícia, falas de radiopatrulha e a escuta do controle de tráfego aéreo com seu vocabulário cravado de enigmas. Nos momentos em que tudo se passa aviões decolam e chegam em várias pistas do planeta, indiferentes aos dilemas particulares. Entre as falas ouvidas – aquela
ciência incompreensível como incompreensíveis são os atos que levam às cicatrizes mais fundas – há fendas para percepções cristalinas. Como o alerta reiterado de que é preciso ter cuidado com os pássaros. É preciso perceber os pássaros assim como com os lobos, os vulcões, as plantas que acidentalmente se agarram ao cabelo. O imaginário da autora segue iluminando nosso fascínio e nossos medos diante das representações da liberdade, para depois resgatá-los com o apreço dos poetas.

Há ainda a lembrança de que ali, mesmo diante dessa ciência e dessa língua impossíveis, é possível fazer amigos “para o fim do mundo”. No fim da linha, no lugar que acumula os destroços, haverá um gesto de redenção solidária e quem sabe espaço para o amor desinteressado.

No texto há um prólogo e há a antessala dele, um bastidor explicitado em cena, um espaço para o antes de tudo. Uma preparação em que as atrizes são apresentadas como atrizes mesmo, e não como personagens. Atrizes vestindo o espírito para viver o que não deveria ser vivido. “Mais um”, diz a vigilante. A questão é o estupro de uma mulher jovem, visto como coisa pontual, mas também a própria ideia de estupro, ampliada em direção a toda ordem de violência que sequestra, devassa, submete corpos em cenários com postes queimados e eternos, melancólicos outonos a desfolhar a vida.

Há então na peça a disposição filosófica, em via negativa, que assume um fracasso fundamental já na entrada. Fracasso sem o qual parece ser impossível começar e seguir. A recusa
ao naturalismo estrito tem a ver com isso. Não é apenas uma escolha no contexto do jogo estético, é uma necessidade. A história carregará a dor em uma intensidade indescritível, que o bom senso recomenda cuidado ao configurar. Há um impedimento ético que o naturalismo dificilmente seria capaz de contornar. Lembra o dilema formal da tragédia antiga. Como representar o trágico sem ferir os olhos? E, quanto às duas atrizes, como fazê-lo também sem ferir-se? Para as intérpretes será preciso coragem. E na escrita será preciso um pacto através dos meios, do tom, dos desvios de gênero, para que a experiência possa ser mimetizada por meio de uma invenção que a alcance sem competir com sua dor irrepresentável.

Edição bilíngue, pela editora Javali

Se para os antigos a solução era relatar a katastrophe ao invés de mostrá-la como ação cênica, aqui o alinhamento entre ética e estética, entre a gravidade do pensamento e as possibilidades da sua apresentação, é feito no âmbito da linguagem. Além de não mimetizar o impasse diretamente, será dada prioridade às aproximações metalinguísticas – suspensões da ação, entradas e saídas das intérpretes nas personagens – de uma maneira que se possa alcançar até mesmo certa forma de humor, que ajuda a tocar na ferida sem inflamá-la mais.

As falas e réplicas vêm por figuras de linguagem que dimensionam o encontro das duas e as questões de fundo. Assim a autora nos diz, através das suas atrizes imaginadas, que será preciso coragem para visitar essa profundeza onde “nenhuma lanterna, ou equação matemática, ou fórmula química, ou foguete da Nasa, ou submarino silencioso”, nenhuma palavra vai alcançar. Trata-se então de um acontecimento que repercute do céu ao fundo do mar. É uma bonita imagem para indicar o terror. E novamente nos lembra
a vocação da tragédia para constatar a infinita capacidade humana de projetar, de fabular, de expandir, ao mesmo tempo em que revela a falha e a sombra iminente da morte. Não é uma preocupação acidental. É uma sinalização que nos diz sobre o impasse da representação tanto quanto sobre as soluções artísticas usadas não para dissolvê-lo, mas para acioná-lo, para colocá-lo cuidadosamente em movimento.

A ideia de que a verossimilhança singular da peça pode ser justificada apenas no plano do delírio é atraente, mas não deixa de ser uma redução das possibilidades de leitura. Ainda que o estado delirante de L seja um fato, o urdimento metalinguístico garante a teatralidade sem precisar de razões extras que a legitimem. Quanto a isso, não há incongruência entre o assunto e o seu tratamento ficcional em base não realista. O que interessa para a teatralidade é que o real, agora reapresentado com as suas coordenadas próprias de causa e efeito, inverte o juízo de valor que alimenta as expectativas por um realismo ao pé da letra. No contraste entre uma lógica esperada e a lógica inventada, a segunda afirma-se mais valorosa, porque, sem perder a contundência que não pode e não deve ser limada de um relato dessa natureza, o faz com as janelas abertas. Oferece linhas de fuga que um realismo strictu sensu não ofereceria.

É algo que serve como princípio aos dois textos reunidos aqui, em que Silvia Gomez escova as formas da literatura dramática realista a contrapelo. Não para ultrapassar o real, no sentido de interdição da mimese, mas para abrir nele novos horizontes. O que se encena nestas peças – a mercantilização do afeto e a violação do corpo do mundo, esvaziando as cifras de vida – são temas que nos chegam também como dramas da própria linguagem.

O que se pode perceber facilmente é que assuntos e poética são orquestrados por uma imaginação notável. Ordenar de um jeito único pensamento e forma é o trabalho recorrente, afirmado
a cada nova história contada por essa autora já fundamental à cena brasileira. Uma dramaturgia que limpa nossos olhos para que vejamos, entre o espanto e a ternura, o combalido coração da época.

(Este texto é o prefácio da publicação)

Silvia Gomez Mantenha fora do alcance do bebê/ Neste mundo louco, nesta noite brilhante

Editora Javali

Lançamento em São Paulo: 19 de Outubro, 19h – CPT/SESC – Rua Dr. Vila Nova, 245

Tradução: Iozé Peñaloza e Carolina Virguez

Projeto gráfico: Amanda Gouveia e Vitor Carvalho

Diagramação: Vitor Carvalho

Capa: Letícia Naves

Tamanho: 18,5 X 12,04 cm

No. de páginas: 256

Ano: 2023

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