Por Kil Abreu
Jair Bolsonaro ainda era um mero deputado bravateiro do chamado baixo clero parlamentar no dia 17 de abril de 2016. Havia cerca de um ano desde a estreia de O que você realmente está fazendo é esperar o acidente acontecer (2015), a partir da peça de Nelson Rodrigues, O beijo no asfalto (1960). Sinalizando a intuição que estava pedindo para ser representada, a montagem organizaria no palco, em chave de experimento, a sociologia dos dias que corriam, usando o texto rodrigueano como retrovisor que dava a ver certos ângulos da des-solidariedade pública nas últimas décadas, desde o Golpe Civil-Militar. O espetáculo dimensionava a virulenta disputa de valores e de poder nos teatros institucionais – justiça, polícia, parlamentos e variantes -, repercutidos no comportamento geral e veiculados pelas redes de informação.
Aquele 17 de Abril, data em que a Câmara Federal aprovou a abertura do processo que levaria ao impeachment da Presidenta Dilma Roussef, é um marco. E pode ser tomado como referência para iluminar retroativamente a performance tanto quanto o lastro histórico que a antecede e o que se desdobra depois dela. Naquele dia Bolsonaro se elevaria entre os ultraconservadores por uma fala provocativa durante a declaração de voto que o colocaria como alto representante da extrema direita dentro do aparato institucional. Era a louvação, em plenário, do coronel torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra. E com ele a aprovação do assassinato como prática política e do corolário de valores que oferece o verniz ideológico que o quer justificar.
“Nesse dia de glória para o povo brasileiro, tem um nome que entrará para a história nessa data pela forma como conduziu os trabalhos dessa Casa. Parabéns presidente Eduardo Cunha. Perderam em 64, perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve. Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff. Pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, por um Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim.”.[1]
Os lemas reavivados da TFP, – Deus, Tradição, Família e Propriedade – era reforçado em apelos populistas como a proteção à inocência das crianças e com lembrança nada gratuita ao anteparo das forças repressivas. Estes são alguns dos elementos na rebaixada experiência de discussão pública que o trabalho da Companhia apresentara com radicalidade formal. Um repertório que, intensificado naqueles anos, avolumou-se na sequência em uma pauta de amplos impasses.
Antes de 2016, no entanto, houve um outro ponto de inflexão que também tem aproveitamento na criação do grupo. Está no rol das condições criadas para o amadurecimento dos paradoxos que ela cristaliza. As jornadas de Junho de 2013, pelo que têm de exemplaridade tanto na explosão popular quanto na assimilação às estratégias conservadoras, são uma passagem em que se demanda novas formas de organização e intervenção. As jornadas foram, por um lado, aparelhadas imediatamente pelo establishment, mas foram também o espaço para experiências estéticas e políticas não totalmente inscritas, como o anarquismo black bloc. E incrementaram definitivamente, por extensão, o espaço das redes, o compartilhamento da informação e da imagem, o midiativismo e suas variações, à direita e à esquerda. Junho de 2013 fez surgir organizações de direita como o MBL (Movimento Brasil Livre) mas também insuflou espíritos para a tomada dos espaços públicos em pautas e ações avançadas, como as ocupações de escolas pelos estudantes secundaristas em 2015. É neste mar de motivações em conflito envolvendo meios de intervenção tradicionais mas também outros em teste o que salvo engano a dramaturgia navega.
História quebradiça, fracassos da forma
São quase dez anos desde a primeira temporada do espetáculo. Não é novidade que no contexto de conjunturas sempre instáveis como a nossa o verbo acontecer que está no título estoure com relativa rapidez, nas formas que conhecemos. Tentativas de golpe, institucionais ou armados; regimes de exceção naturalizados como se fossem o usual da vida; pauladas regulares nas gentes do andar de baixo, demonização dos corpos e comportamentos dissidentes. Tudo isso são práticas, acontecimentos permanentes em nossa cultura política. Porém, pensando em Nelson Rodrigues tomado como fonte pelo grupo, é preciso atentar ao fato de que já não estamos na era do rádio ou nos primeiros anos da TV. A atualidade dos meios de interação via redes digitais faz diferença sobretudo no modo mais veloz e intensificado com que a disputa social nos arrola, repercute em nós e além. O trabalho da companhia é, pois, uma radiografia crítica de aspectos duradouros da interação mas, nas condições dadas, aponta termos relativamente novos quanto às formas, volumes e duração do enfrentamento.
Se por um lado há diante dos olhos aquele contexto mais imediato por outro há a dramaturgia de Nelson Rodrigues como um emblema útil. A peça escolhida atesta o para a frente e o para trás de um arco amplo. O autor oferece o inconsciente social a céu aberto ao mesmo tempo em que anuncia a sua superestrutura, retratada na discussão sobre as implicações éticas no mundo da informação-mercadoria. Visto sob este ângulo, é o que oportuniza a náusea diante do contraste entre a inflação de imagens que emerge inesperadamente da boa fé desenvolvimentista pós anos 50 e o fracasso do processo na sequência imediata: “O sol nas bancas de revista/ Me enche de alegria e preguiça/ Quem lê tanta notícia?” – perguntava Caetano Veloso[2].
Basta notar que no intervalo que vai de 1960, quando O beijo no asfalto é escrito, a 1967, quando a canção vem a público, há um golpe militar. O Brasil não é o futuro, é uma sociedade, enfim, baixa e melancólica. Em um salto duplo, de Nelson a Caetano e deste ao trabalho da Acidental, pode-se dizer que o quadro é pressentido como farsa moral pelo primeiro, como rebordosa lírica pelo segundo e alcança o presente, neste espetáculo, como relato irônico da barbárie, já em meio à conjuntura aqui descrita.
Uma das coisas mais interessantes e provocativas da montagem é que todas as fichas são colocadas em uma deliberada formalização irônica do fracasso. É uma percepção consequente e produtiva. Define uma posição, um sentimento, um viés crítico a nos dizer, no primeiro plano mais superficial da representação, sobre o malogro civilizatório em nosso quintal. Mas isso não basta. A formalização cênica recupera incongruências de longa data se pensarmos no contraste entre dramaturgia, formas artísticas e processo social.
Para chegar nesta questão por uma porta aberta no espetáculo podemos pensar na música de abertura que antecede a entrada do elenco. É uma ária popular de A Flauta mágica, de Mozart. “Der Hölle Rache kocht in meinem Herzen!”. Do alemão, “a vingança do inferno ferve no meu coração!”, diz a Rainha da Noite. No libreto ela coloca um punhal nas mãos da filha incentivando-a ao assassinato de Sarastro. O que pode parecer para alguns apenas um prenúncio sobre a gravidade do que virá na sequência da encenação é na verdade um primeiro movimento no sentido de assumir um fracasso fundamental, que salta do campo do assunto e é assimilado na forma. O fato de a gravação escolhida ser a da soprano amadora Florence Foster Jenkins, que entrou para o anedotário da música como a pior cantora de todos os tempos, diz muito. A escolha não parece ser só para afirmar o espirito zombeteiro do grupo, que se manterá durante a representação, nem para servir a uma antecipação meramente tautológica se pensarmos nas questões de fundo (o ódio como afeto, tal qual se anunciou). É uma introdução que anuncia: vamos aqui levantar um caderno de erros, não só por gosto e sim por necessidade.
Esta ideia, de uma forma fracassada por necessidade, estende-se para antes da montagem. Está já no texto de Nelson Rodrigues, nas suas curiosas incongruências de gênero, e é exposta ao limite na iconoclastia da encenação.
O beijo no asfalto é uma peça anunciada como tragédia. Tem como finalidade, portanto, a representação do inevitável. O fato é que o tempo só ajudou a demarcar a insuficiência deste enquadramento. A categoria trágica da culpa, no mote dado – Arandir era ou não era homossexual? – só pode nos chegar hoje como algo que beira o humorismo. Resguardados os valores de época, que não são (e são) os mesmos, esta seria uma percepção por certo extemporânea. O problema é que além da questão moral, que não sobrevive senão como caricatura, há outros indícios de que o texto não aceita a sublimidade trágica a não ser a fórceps, na conta de uma genérica luta do ser humano contra seus desejos ocultos. É que o sublime, mesmo revelado na falha, pede um estrato ético que nunca fez parte do nosso acordo social.
Por isso no texto do autor pernambucano a sublimidade trágica não resiste ao urdimento da trama. Um sujeito que é flagrado dando um beijo “por compaixão” em um moribundo atropelado pelo bonde, e todo o inquérito coletivo, policial e familiar em torno, não escondem os descaminhos de gênero. Do jeito brasileiro, ao invés da alta sublimidade o enredo envereda pelo desentendimento banal, o disse-me-disse acusatório, a comoção pública que tem as raízes trançadas no chão da vida privada. Ainda que tenha sido anunciada como “tragédia carioca”, a peça está bastante próxima de um possível drama de costumes, a caminho da farsa. Não se conforma em um único departamento porque a dramaticidade convivial que tenta representar não pode afirmar-se pacificamente em um único gênero. A sociabilidade é quebradiça. Temos então uma peça em que o pathos, o que seria a comoção trágica, segue lado a lado com a falsificação moral. Este é o seu inescapável campo de verossimilhança.
Se a peça falha naquela ambição de gênero, por outro lado torna-se útil ao trabalho da Companhia na sua investigação dos lugares do ódio. É que a falha trágica não está em Arandir, não se concentra no caráter como na tragédia antiga. A falha está na condição geral dos personagens, desenha-se como força atávica coletiva, algo que parece agora sim inescapável. Este é o seu correspondente “destino”. O beijo de um homem em outro é apenas o dilema acidental que acaba por iluminar outros episódios e vontades mantidas até ali ocultas e que vêm à luz até que se sedimentem como crime. Mas sem sublimidade. O que sobra é um arremedo de grandeza.
A novidade quando da retomada deste material pelo grupo é que o crime agora aparece organizado em hordas espontâneas. No ambiente das redes não há mais a linha reta do bonde e sim as ágoras infinitas dos rizomas digitais e seus tiros retóricos. Não há apenas o repórter sensacionalista, a imprensa inescrupulosa mas um conjunto de agentes já desconectados da própria ideia de imprensa enquanto instituição. Agentes noticiosos voluntários, articulados no mundo dos influencers que o capital informacional arregimenta e disponibiliza. Estes são os dispersos, inexatos, fugidios personagens que o espetáculo plasma, em uma re-dramaturgia deliberadamente errada como o canto desafinado de Foster Jenkins. O desenho do erro é uma necessidade da representação. Ao elencar e reproduzir no osso a violência assustadora dos discursos de ódio, esta é a sua forma mais honesta.
Encenação do dissenso
Na montagem a peça original serve como modelo ao decalque paródico e é posta a funcionar como estrutura modelar da babel moralista, no passado mas sobretudo no presente. As operações de linguagem que a nova dramaturgia oferece não têm o objetivo de corrigir, dedo em riste, o pensamento rodrigueano – o que seria ingênuo porque a desatualidade da peça denuncia-se sozinha. Mais importante é o texto reposicionado em ironia, tomado como registro de um percurso que já no início dos anos 1960 dizia sobre as relações entre notícia, política e comportamento. Linhas de fuga que agora, já no ponto do paroxismo, explodem na arena das redes sociais. Se os meios são novos, são velhos, entretanto, as coordenadas do discurso autoritário, desta vez mais compartilhado que nunca. Guardadas as proporções e volumes possíveis a cada época, o percurso do escândalo segue tão brasileiro quanto sempre foi. Passa tanto pela praça pública quanto pelo buraco da fechadura ou da conexão a cabo, com parada na delegacia de polícia.
A encenação conduzida por Carlos Canhameiro é na base do contrapelo. À balbúrdia dos motivos, à retórica inflacionada das fontes responde-se com uma marcação cênica disciplinada do início ao fim. Não deixa de ser uma aproximação ao que se chamou depois de peça-palestra. Mas com estrutura de jogral adulto em que o fim de feira da vida, a fúria coletiva, são arrolados de uma maneira ordenada, material. Tumultos medidos.
Entre os procedimentos construtivos chama a atenção a disposição reiterada para o comentário e a rasura. A rasura dá conta de decalcar o texto original, às vezes preservando-o e às vezes modificando-o. Cria o suporte paralelo em que a peça vai sendo desmontada, sublinhada, riscada e reposta em novas linhas de ação física e verbal. O comentário vem junto, na re-contação da história, pela superfície, sem intenção de descer à psicologia, às razões e desrazões das personagens. No contexto novo que o grupo quer apresentar é algo que sublinha muito produtivamente o quiproquó, o comezinho dos enfrentamentos, apresentados como se fossem coisa profunda. É um artifício de ridicularização. Denuncia a superficialidade das intenções, a fragilidade dos umbigos iluminados e iluminantes que pretendem trazer para si a verdade final do mundo.
Assim a nova peça organiza-se como um pós-pastiche, uma colagem a nos dizer, subliminarmente, que aquilo deu nisso. Ou a nos lembrar, quem sabe, que isto sempre esteve aqui. Nas pontes que levam às aporias atuais é evidente o gosto por denunciar a continuidade entre o íntimo e o público (é o que as câmeras vigilantes nos bastidores indicam). E também o recurso da linguagem fática, levada ao máximo do apelo retórico. A anomalia das falas que o elenco performa ganha efeito teatral não por enxugar, por sintetizar o excesso, como pediria uma dramática tradicional, e sim por superdimensoná-lo.
Recalque e denegação
Para uma vista mais ampliada sobre os temas comuns a O beijo no asfalto e a dramaturgia da Cia de Teatro Acidental é preciso lembrar que entre nós as declarações de amor nunca vêm sozinhas. Ao menos para os empobrecidos e explorados vêm sempre junto com o estalido do chicote. De uma maneira às vezes mais explícita, às vezes mais enviesada, é também sobre isso que estes teatros tratam, porque é fundamentalmente sobre isso a nossa história, neste aspecto das relações entre comportamento e política. O que quer dizer, como pautou a Companhia, que considerações sobre afeto e política entre nós não podem dispensar um olhar sobre as condições que marcam os imaginários de mando e submissão desde sempre.
Muito se falou sobre as formas do dissenso que vêm nos ocupando nos últimos anos e que o espetáculo atualiza. Que o grupo o faça não na chave da metáfora mas quase que da metonímia, com a sua coleção de sustos apresentada a seco, já é algo que diz muito. Uma parte do debate acusa que a essa altura alguns conceitos, como o de cordialidade, são insuficientes para dar conta do tamanho do problema. Mas a ideia de cordialidade, nos termos em que foi apresentada por Sergio Buarque de Holanda, nunca representou um arranjo pacífico para a convivência. A cordialidade é um fenômeno de extrema violência ao ajustar condutas que colaboram para a administração de diferenças injustas. E segue sendo, com ou sem enfrentamentos explícitos.
Vista desta forma talvez seja possível considerá-la, a cordialidade, como parte do que Lélia González chamou de afeto neurótico – algo que sem dúvida pode ser intuído neste trabalho. A disputa de valores que está em performance tem a ver sem dúvida com o que ela chamou denegação[1], a partir do conceito clássico freudiano (negação). É basilar. O argumento da mistura, da miscigenação racial que sustenta as falas de direita é algo exemplar e serve como instrumento para compreender o processo além da questão racial. Esta tecnologia ideológica de branqueamento – a miscigenação – é útil para atestar também, nos termos deste espetáculo, não só os elementos de negação como também de recalque que a chamada “polarização” engendra. O que estamos vivendo e a Companhia apresenta na montagem é a fatura poética, em registro grotesco, das formas de recalque que aparecem em Nelson Rodrigues e se exacerbam agora. Algo que pode surgir aos olhos inclusive como demonstração de amor se concordarmos que “o amor” entre nós sempre foi a antessala do assédio, da porrada, do tiro anônimo, do enquadro oficial, do assassinato.
Ao fazer da incongruência, da falha, da incompletude que é a violência da sociabilidade injusta, uma experiência de erros artísticos intencionais, a Companhia entregou uma dramaturgia na forma de arte-fato. Um objeto que flagra o calor do momento ao tempo em que nos oferece invenção e , com sorte, horizonte.
CENA ABERTA faz parte do projeto Arquipélago, com apoio da produtora Corpo Rastreado.
- Este texto foi escrito a pedido da Companhia, mas permanecia inédito até o presente.
- O espetáculo O que você realmente está fazendo é esperar o acidente acontecer está sendo apresentado na mostra Trilogia Afetos Políticos, junto a duas outras montagens: E o que fizemos foi ficar lá ou algo assim e E se a porta cair seguiremos sentados apenas mais visíveis (veja o serviço, abaixo).
SERVIÇO
Mostra teatral “Trilogia Afetos Políticos”, Com Cia de Teatro Acidental
Teatro Paulo Eiró
19 a 21 de julho de 2024 – Avenida Adolfo Pinheiro, 765 – Santo Amaro- Zona Sul – SP – Informações: (11) 5546-0449
19 de julho (sexta-feira), 21h – Espetáculo “O que você está realmente fazendo é esperar o acidente acontecer”.
20 de julho (sábado), 21h. Espetáculo “E o que fizemos foi ficar lá ou algo assim”
21 de julho (domingo), 19h. Espetáculo “E se a porta cair seguiremos sentados apenas mais visíveis”
O Andar
26 a 28 de Julho.- Rua Dr. Gabriel dos Santos, 30 – 2º Andar Santa Cecília. informações: (11) 3666-6138
[1] Jair Bolsonaro. Fala pública. Câmara federal, 17/04/2016
[2] Veloso, Caetano. Alegria, alegria. Caetano Veloso (álbum), 1967.
[3] GONZALEZ, L. Racismo e Sexismo na cultura brasileira. In: Anpocs, 1984, p. 223-244