Vicente Concílio
Especial para o Cena Aberta
Quando fomos em família assistir ao filme Filadélfia em um cinema de rua do bairro paulistano da Penha, eu tinha 15 anos. Provavelmente a isca para termos feito esse rolê tenha sido o Oscar de atuação que Tom Hanks venceu naquele ano. Era 1994 e a escolha de um drama como entretenimento não era uma opção habitual, não fossem as láureas concedidas ao ator, edulcoradas pela suposta missão civilizatória colada ao filme – a de que ele era uma lição quase documental de como a aids destruía vidas, carreiras e seguiria atormentando seus herdeiros mesmo depois do seu velório. Mesmo que você fosse um advogado bem-sucedido, mesmo que seu namorado fosse o Antonio Banderas, mesmo que você morasse no suposto apogeu do mundo capitalista dito desenvolvido… O vírus ia acabar com seu corpo, com suas relações e só lhe restaria uma batalha inglória em um sistema judicial que tinha nojo de você. Ou seja, NÃO TENHA AIDS. Não havia outra conclusão.
No Brasil, antes do pas de deux entre Tom Hanks e seu porta-soro embalados pela voz de Maria Callas interpretando La Mamma Morta, a gente ainda foi “educado” a temer o vírus por outra escolha editorial infame: a capa da Revista VEJA, em 1989, que expunha o rosto fragilizado de Cazuza com a frase “uma vítima da aids agoniza em praça pública”. “A gente” éramos nós, as gays, as devassas, as que não se enquadravam no padrão monogâmico, as que usam o cu pra ter prazer e portanto são dignas de serem dizimadas pelo vírus implacável.
Em A doença do outro, Ronaldo Serruya, o mais que competente ator, dramaturgo e oráculo ativista – que professa um futuro em que viver com o vírus não representará esse estigma duradouro -, toma a fatídica cena do filme estadunidense como a primeira imagem de controle (voltaremos a esse conceito adiante) que fundamenta sua relação com a doença. Uma relação que ele vai apontar como ancestral. Porque para nós, as bichas de hoje, pra entendermos nossas existências e ainda ousar qualquer sonho pra proclamar como futuro, nesse projeto é necessário levar em conta a ancestralidade positiva, de um grupo de corpos e corpas marcadas por uma doença que faz 40 anos agora e que tendemos a achar que já foi superada, mas que permanece no imaginário como uma espécie de selo de irresponsabilidade, de sujeira ou de promiscuidade de quem convive com o vírus.
Em 05 de dezembro de 2021, Ailton Krenak fez a seguinte declaração, referindo-se à Covid 19: A pandemia não vem pra ensinar nada. A pandemia vem pra devastar as nossas vidas. Eu não sei de onde vem essa mentalidade branca de que o sofrimento ensina. (…) Essa ideia eu não tenho nenhuma simpatia com ela. Se for pra sofrer, eu não quero aprender nada. A “gente branca”, da qual faço parte, sabemos bem de onde vem essa ideia de que aprender é resultado de sofrimento: das religiões judaico-cristãs, de sua estrutura machista e normativa, da lógica de que há um custo altíssimo pra salvar a alma, e esse custo é o padecimento do corpo, que deve ser reprimido e punido nas instâncias da liberdade, da diversão e do gozo.
Ou seja, mesmo que Krenak esteja se referindo à pandemia atual, não tem como não tecermos relação entre seu raciocínio e a pandemia da aids. Porque as perdas e o sofrimento causados por ambas as tragédias foram, e ainda são, uma moeda da qual tiram vantagens discursos opressores que se apropriam dos problemas escancarados pelas doenças: a falta de acesso universal a um sistema de saúde pública decente, o racismo estrutural que se fortalece com as imensas desigualdades econômicas e preconceitos pautados em intolerância contra as mulheres, as dissidências sexuais e de gênero e a xenofobia direcionada contra regiões, países ou populações empobrecidas. E os transformam em questões de ordem íntima, quase meritocrática, de responsabilidade exclusiva da vítima.
Como superar isso? A quem interessa que as pessoas que convivem com o vírus sejam temidas? A quem interessa seguir imprimindo em corpos dissidentes uma série de marcadores infelizes, que são sempre tomados como estratégia ameaçadora pelos que se julgam imunes ao vírus? Vocês lembram do B*ols*na*o afirmando que “pessoa com HIV é um custo para todos no Brasil” (fevereiro de 2020), ou mais recentemente quando em uma live (20 de outubro de 2021) esse ser afirmou que a vacina contra a covid aumentaria as chances de contrair hiv? É contra isso e a favor de uma existência feliz que A doença do outro se ergue com força.
Por isso é importante entendermos o conceito imagens de controle, cujas origens remetem aos estudos da feminista preta estadunidense Patricia Hill Collins. Controlling images é o termo em inglês. Pra ir direto ao ponto, é um conceito que demonstra como as imagens, nesse mundo de tanto apelo midiático, povoam e estruturam nossas referências e moldam a forma de nos relacionarmos em um tempo marcado pelo audiovisual. É com a exposição desse conceito que Serruya praticamente abre sua peça-palestra, nos tomando como cúmplices de uma quase-aula que mescla a exposição de fundamentos teóricos com a força de seu próprio memorial e experiências pessoais.
Até certo ponto da encenação, somos guiados por um percurso racional, mas a partir de determinado momento, já estamos tomados integralmente por meio da subversão dos sentidos. Sem perceber, estamos integrados à peça, estamos todas na plateia pulsando a 120 batimentos por minuto, cantando a plenos pulmões Because the night, na voz de Patti Smith (amiga íntima de Robert Mapplethorpe, fotógrafo icônico que também foi vítima da aids) e concordando, como bem frisou o movimento Act Up, que SILÊNCIO = MORTE
É uma avalanche de referências cheias de sentido, estruturadas por uma galera muito consciente do que está fazendo. Compondo com a atuação de Ronaldo Serruya há o cenário surpreendente de Evee Ávila e Maurício Bispo, que também cuidam da videoarte junto com Caio Casagrande, o figurino sugestivo de Luiza Fardin, a luz de Dimitri Luppi e a trilha de Camila Couto, tudo isso na direção de Fabiano Dadado de Freitas, que tem feito muitas parcerias lindas com Serruya.
Quando o espetáculo termina (ele termina?) estamos todas dançando, tomadas por um sentido de força coletiva que esses meses de pandemia nos amputou – e segue nos amputando. Sentimos que a cena, que a trilha, que o fato de estarmos imersas em um movimento integrador, tudo nos toma de assalto e realmente subverte o aprisionamento limitador que as imagens controladoras nos submetem. É preciso virá-las do avesso e de dentro pra fora, para que nós subvertamos aquelas normas todas.
Para explodir as imagens de controle a resposta pode ser a VIDA EM DESCONTROLE, nos sons, nos cheiros, nas trocas de bactérias e vírus que compartilhar o mesmo espaço proporcionam.
– Vicente Concílio é professor da Graduação e Pós graduação em Artes Cênicas da UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina. Desenvolve pesquisa na área de Pedagogia nas Artes Cênicas. Estuda práticas teatrais abolicionistas no sistema prisional, teorias e artes transviadas.
A Doença do Outro teve sua primeira temporada no Espaço Cênico Ademar Guerra do CCSP – Centro Cultural São Paulo – de 30/11 a 5/12/2021, no contexto da 7a. Mostra de Dramaturgia em pequenos formatos cênicos.
Idealização, Texto e Atuação – Ronaldo Serruya
Direção – Fabiano Dadado de Freitas
Cenografia – Evee Avila e Mauricio Bispo
Figurino – Luiza Fardin
Luz – Dimitri Luppi
Videoarte – Caio Casagrande, Evve Avila e Mauricio Bispo
Edição e Filmagem – Caio Casagrande
Trilha Sonora Original – Camila Couto
Designer Gráfico – Rafael Fortes
Assessoria de Imprensa – Nossa Senhora da Pauta
Cenotécnico – Alexandre Rodrigues
Operação som e vídeo mapping – Ivan Soares
Assistente e operação de luz – Paloma Dantas
Costureira – Maria de Lourdes Lopes Castilho (Leninha)
Fotos e Assessoria de mídias sociais – Jonatas Marques
Produção – Cristiani Zonzini
Realização – Centro Cultural São Paulo