Por Kil Abreu
A primeira observação sobre a visita do grupo Magiluth ao poema dramático escrito por João Cabral de Melo Neto em meados dos anos 1950 é que trata-se, como no original, de uma jornada em deslocamentos, mesmo não sendo o espetáculo a montagem do texto, que funciona como material de partida. Em “ Estudo Nº 1: Morte e Vida”, em cartaz no Sesc Ipiranga em São Paulo, segue o princípio da procura, o que é significativo por si em um país de desassentamentos de toda ordem. Seres humanos a caminho do melhor lugar de existência é para nós o drama de ontem e de hoje. Na leitura do Magiluth assunto e forma alinham-se – o problema ambiental, a imigração, os lugares de poder dos que ganham com a miséria. Mas redimensionados em outras tantas direções. Da vida do migrante ou do imigrante expulso da terra por causa do clima e da desassistência aos dilemas da ordem trabalhista, o espetáculo inventa um arco propositalmente cheio de pontas, de entradas e saídas. No aspecto da fábula redesenha personagens e circunstâncias, fazendo associações livres com o Auto original. Quanto às estratégias formais, sai em busca de configurar a urgência da discussão. Para isso lança mão sobre artifícios hoje já recorrentes na cena contemporânea, como os da “peça-palestra”, o estudo cênico, o experimento público. Em qualquer caso são gestos criativos na área, digamos, de um deliberado inacabamento fundamental, que quer mimetizar nas malhas da cena os ritos também não concluídos do processo social.
Sob o sol inclemente, que é vida mas que também mata, há o caminho do rio e da cidade. Esperança e idealização. A aridez da terra, que expulsa, não é apenas a aridez da terra, é o chão duro e aparentemente infértil de todo o processo social – um dos solos mais desiguais do mundo. Então veremos, nos movimentos cíclicos que a encenação de Luiz Fernando Marques levanta, as condições que atualizam o texto de Cabral. Parte dos personagens – agora não vividos, mas “relatados”, narrados – ainda é, sim, aquela do século passado quando o poema foi escrito. E por vezes são novos: no plano geral, os refugiados do clima, das guerras étnico-econômicas e variantes; e no contexto regional os imigrantes que, nas cidades, serão os cidadãos de segunda ordem, a miúra explorada até o osso pelo capital.
Antonio Candido analisou a certa altura a obra de Jorge Andrade, autor da mesma geração de João Cabral que também escreveu sobre a gravidade do ciclo social. A peça era Vereda da Salvação, de 1964 (estreada em 1965). Lá Candido comenta esta recorrência – a da miséria, do desamparo -, como marca insuperada da sociabilidade. O que o grupo pernambucano faz é atualizar esta percepção, em tom menos fatalista e agora provocado por chamados e meios não dados a gerações anteriores. Estamos na época da informação ampliada, rápida, volumosa e horizontal. Isto é algo que o espetáculo mostra literalmente. E a amostragem configura subliminarmente algo que não é discutido no primeiro plano, mas está lá: a ansiedade por não darmos conta de “tanta notícia”, como já dizia Caetano Veloso nos anos 1960. É uma condição que neste momento vivemos já no ponto do paroxismo. Se olharmos para a montagem, não é um lance apenas ilustrativo, lateral. A sociedade da informação ali representada abre por um lado infinita linha de fuga para o olhar; e por outro uma armadilha, se considerarmos que o olhar favorecido e ampliado pelas redes pode resultar também na perda de foco em uma arte tão sintética como o teatro. O rizoma como estratégia de pensamento não é pacífico, tem ganhos e também perdas. São impasses importantes na encenação do Magiluth.
E têm desdobramentos. Por exemplo, o espetáculo tende salvo engano a universalizar os temas tratados por João Cabral, com ênfase nas questões ambientais. Há nesta disposição o ganho de dimensionar o problema como preocupação geral da humanidade. Mas a escolha quase cai em um enquadramento totalizante, que tende a apagar as suas especificidades em contexto determinado. É um tipo de defesa de difícil contestação. Quem vai contra-argumentar que as questões do clima, dos movimentos migratórios forçados, não são “em geral” questões de interesse global? No entanto esta ampliação do campo de visão, se nos comove em uma frente também nos distancia das condições singulares da tragédia humana, que é global mas tem feições regionais e conflitos específicos.
De todo modo na montagem a dialética que garante a teatralidade viva está resguardada em forma e sentidos no movimento ensaístico que o grupo faz em cena. Talvez antes mesmo de ser um “estudo”, uma “peça-palestra”, é um ensaio cênico. No sentido mais caro às pessoas de teatro, o do ensaio como caminho para a criação, sendo que aqui o caminho é a obra. Mas também no sentido filosófico, o ensaio como uma forma livre para se pensar o real. Por isso, por esse sentido explícito de liberdade instaurada – que não se confunde com improviso ou falta de rigor – é bonito ver o grupo movimentar-se mesmo no impasse. Ou, talvez, sobretudo no impasse. O espetáculo tem uma inquietação juvenil muito bem vinda, que monta e desmonta, repete, reinaugura uma vez mais o discurso necessário, como a insistir não só no renascimento como também na reapresentação das demandas diante de um processo histórico de exclusão que parece não ter ouvidos para o justo. Um protesto organizado e expresso na iconoclastia inquieta da encenação, que o reafirma a cada sequência .
Uma coisa muito estimulante para o espectador, a espectadora interessados, é perceber que a dramaturgia faz relações aventurosas. Por vezes dramáticas, como a morte de um Severino entregador de aplicativo nas ruas de uma grande cidade. Já não vítima de latifundiários como no poema de João Cabral, e sim vítima do massacre institucional, da ordem trabalhista consagrada em Lei, que sequestra direitos e mata os do andar de baixo. E aí já não precisamos ter vindo do Sertão para sermos Severinos, basta estar no mesmo lugar de classe. Em outra frente a peça apoia a subida de outros Severinos aos espaços de poder. Assim, Paulos Galos e Lulas são subliminarmente invocados e indicam a um só tempo o limite e a possibilidade de quebra da sina trágica. Embora este não seja o ponto central na abordagem do Magiluth, é algo angular quanto à politicidade do trabalho deles. Mostra os argumentos falsamente naturais com que somos educados, a ordem de mando e submissão, ao mesmo tempo em que os corrige simbolicamente.
Não será demais dizer que um trabalho assim “em construção”, com uma visão material sobre os discursos e elementos da cena, não poderia ser mais parente da poesia de João Cabral. Como já se falou muitas vezes, ele foi um poeta substantivo, construtivo, cubista, que no entanto não rendeu-se ao mero formalismo, acenou sempre para a tentativa de compreensão das relações no urdimento firme do poema. E é assim também que o grupo coloca seu teatro em cena, de uma maneira sua.
Um outro aspecto do experimento é que mais que a forma da peça-palestra, o Magiluth talvez esteja dialogando, voluntariamente ou não, com outras tradições do palco moderno. A que nos ocorre imediatamente é a ideia brechtiana para um teatro científico. E, provavelmente antes, o modelo da cena de rua que Brecht usava para apresentar os fundamentos do teatro épico. Está tudo lá e aqui: o gosto pela razão, os procedimentos de demonstração do argumento através da narrativa, o apreço não pelo sublime da vida, mas pelas situações ordinárias. E o princípio performativo que suspende a personagem para dar lugar à voz dos próprios atuadores.
Quanto a isso, a performatividade, é notável que o performativo, no caso, não é algo imparcial. Ao contrário, é deliberadamente comprometido com um ponto de vista sobre a realidade, algo que às vezes parece difuso mas está lá, e arrasta os atuadores e seus lugares sociais para o campo dos significantes – eles mesmos tomados como signos . Atores, cidadãos nordestinos que por um lado conviveram, convivem com o imaginário da seca, dos dilemas ambientais como elemento da política na sua versão de fato assim como na sua versão construída socialmente, coisa que enriqueceu muito coronel por aí. Mas que por outro estão olhando por fora, com a distância crítica que só enriquece o que se está pensando sobre o tablado. Para efeito do que a peça nos diz imediatamente no seu plano formal, esta percepção deslocada reforça o frescor de uma cena já não tributária de certas expectativas vigilantes sobre o que se poder esperar de um grupo de teatro nordestino. Como na ótima trilha pensada para o espetáculo, é uma fala cênica em busca, mas afirmativa, não rendida aos departamentos. Punk, hard, que não cabe nos escaninhos e fala para a complexidade do mundo atual com o frescor, a vitalidade e a autonomia que vêm marcando a criação do grupo.
Estudo Nº 1: Morte e Vida
Grupo Magiluth
Até 6 de Março – Sexta e Sábado às 21h, Domingos às 18h
Sesc Ipiranga- Rua Bom Pastor, 822 – Ipiranga – São Paulo SP | (11) 3340-2000
Ficha Técnica
Criação e Realização: Grupo Magiluth
Direção: Luiz Fernando Marques
Assistente de Direção e Direção Musical: Rodrigo Mercadante
Dramaturgia: Grupo Magiluth
Elenco: Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Giordano Castro, Lucas Torres e Mário Sergio Cabral
Produção: Grupo Magiluth e Amanda Dias Leite