Por Alberto Silva Neto
As fotos deste artigo são de Bruno Moutinho
- Este texto tem apoio do projeto Arquipélago de fomento à crítica, coordenado pela produtora Corpo Rastreado.
Imagine a vida social na provinciana Belém do Pará da década de 1970 servindo como ambientação para uma trama também setentista de Nelson Rodrigues e para a crítica à sociedade conservadora.
No segundo semestre do ano passado este argumento virou espetáculo na capital paraense. Tudo o que não se diz apodrece em nós foi criado a partir da peça Anti-Nelson Rodrigues (1973), cuja fábula gira em torno do jogo de sedução de um jovem rico com moça de origem modesta, evidenciando conflitos de classe.
Merecedor de nota é o fato de essa criação resultar de um projeto artístico singular, cujos contornos mais notáveis se revelam na sua origem, a partir de um encontro inédito unindo três grupos paraenses: o grupo Palha (que assina a realização), o Gruta e o Cuíra – coletivos cujas trajetórias figuram entre as mais marcantes do teatro do Norte nos últimos cinquenta anos.
Nesse contexto, além do ganho na parceria artística o espetáculo chama para si uma tarefa política: fazer frente às omissões e equívocos do poder público quando o assunto são as políticas culturais para as artes cênicas. Faz todo sentido, já que por aqui predomina o cenário desfavorável onde se opera na escassez das migalhas dos editais. No caso dessa ação, um modesto prêmio de incentivo da Fundação Cultural do Pará.
É assim que no gesto simbólico de dividir o pouco pão, os três grupos históricos assumem a partilha criativa também como resistência. Estratégias de sobrevivência estão no DNA destes e de outros grupos de Belém. O Gruta, por exemplo, foi fundado em 1967 e é o coletivo mais antigo em atividade. O Palha e o Cuíra vieram adiante, no início dos anos de 1980. No osso, são lideranças artísticas que carregam muita bagagem, embora invisibilizada na excludente historiografia do teatro brasileiro, majoritariamente tributária da cena produzida no Sudeste.
Tudo o que não se diz apodrece em nós cumpre segunda temporada na Casa Cuíra, um dos diversos espaços cênicos independentes fundados em Belém como alternativa à dificuldade de acesso às poucas e disputadas salas, que cobram taxas fora da realidade local.
Movimento de grupos
O espetáculo tem encenação e direção cênica de Paulo Santana, ator e cofundador do Palha, mesmo grupo de origem da produtora Tânia Santana. Com eles, vieram os atores Luiz Carlos Girard e Kesynho Houston, com participações em montagens mais recentes do grupo. Pauli Banhos, com passagem pelo Cuíra, completa o trio dos mais tardios nos palcos paraenses. O elenco traz, ainda, quatro veteranos. Elias Hage já trabalhou com o Palha. Monalisa da Paz e Adriano Barroso, com suas vidas artísticas dedicadas ao Gruta, são herdeiros justos e naturais na tradição familiar desse grupo, como filha e genro de Henrique da Paz – seu cofundador e um dos maiores nomes da cena paraense, morto em 2021. Completa o time Zê Charone, com passagem pelo Palha, mas já com quase trinta anos à frente do Cuíra, também como produtora, em parceria com o dramaturgo Edyr Augusto.
Realismo friccionado
É em diálogo com este prédio-sede do Cuíra – um casarão em estilo colonial, no bairro Cidade Velha – que o diretor Paulo Santana instalou sua encenação. O cômodo mais amplo foi adaptado buscando a maior proximidade possível de uma sala de espetáculos à italiana. A solução encontrada foi construir uma pequena arquibancada (com capacidade para 35 lugares) em frente a qual se ergue a caixa-preta com três “paredes” de tecido cujas fendas servem para entradas e saídas de cena.
Porém, a estética ilusionista que se anuncia acaba subvertida quando o encenador usa uma porta lateral do cômodo, próxima à plateia, como acesso para alguns personagens. Desta forma, é nesta concepção cenográfica impura que se procura assentar um teatro dramático de base realista ao mesmo tempo em que o realismo é momentaneamente friccionado. A favor deste plano está a escolha por regionalizar a trama através da encenação. Assim, opera-se tanto o exercício coletivo de adaptação dramatúrgica que incorpora referências do cotidiano belenense ao texto, quanto a criação de visualidade sustentada em figurinos, adereços e objetos de época.
Estas escolhas estéticas podem ser vistas pelo viés do tradicionalismo se comparadas à diversidade de rupturas e deslocamentos que caracterizam a cena contemporânea. Por outro lado, é sempre oportuno recorrer à provocação de Peter Brook, quando nos lembra que a “centelha de vida” que a cena pede pode se revelar, rigorosamente, em qualquer teatro.
E, sim, há vida em cena. Ela se manifesta de maneiras diversas. Enquanto parte do elenco aposta na tradução das situações dramáticas da peça em partituras de ação capazes de ilustrá-las cenicamente com precisão, outros procuram ludicidade na relação em ato com a dramaturgia, favorecendo em suas performances a confrontação entre gesto e palavra, o que amplia possibilidades de representação em chave cômica, como convite sedutor a também se rir com Nelson Rodrigues.
É assim que testemunhamos neste momento em Belém algo além de um espetáculo teatral em temporada. Trata-se de um trabalho estético que simboliza a partilha criativa imensamente significativa para os que lutam – e os que já lutaram – por dignidade para o teatro paraense. É uma missão para a qual os grupos Palha, Cuíra e Gruta têm contribuição inestimável.
* Alberto Silva Neto, paraense de 54 anos, é ator, encenador, professor e pesquisador. Dirige o grupo USINA desde 2004. Doutor em Artes pela UFMG, leciona teoria e atuação no curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Pará (UFPA). Coordena a pesquisa PACATU – Práticas para a Autonomia Criadora do Atuante.
GALERIA
SERVIÇO
O Que Não Se Diz Apodrece em Nós
De 18 de Janeiro a 04 de Fevereiro – Quinta a Domingo, 20h
Duração: 75 min.
Recomendação etária: 12 anos
Casa Cuíra – Rua Dr. Malcher, 287 – Cidade Velha
Informações e ingressos antecipados no número 99841 9117 e instagram @teatropalha
FICHA TÉCNICA
Realização: Grupo de Teatro Palha
Direção e encenação: Paulo Santana
Elenco: Adriano Barroso, Zê Charone, Kesynho Houston, Luiz Girard, Pauli Banhos, Monaliza da Paz, Elias Hage
Preparação de intérpretes: Adriano Barroso
Cenografia: Charles Leon Serruya
Figurino: Bach Sampaio e Paulo Santana
Designer de Luz: Sônia Lopes
Sonoplastia: Isabella Bravim
Designer Gráfico: Raphael Andrade
Fotos: Bruno Moutinho
Apoio Técnico: Zezinho Igreja
Assessoria de Comunicação e Mídias Sociais: Leandro Oliveira
Off de mídia: Ismael Mello
Produção: Tânia Santana
Agradecimentos
Geraldo Senna
Abigail Silva
Edyr Augusto Proença
Linda Ribeiro
TV LIBERAL
Eliezer Athayde
Zê Charone
Wlad Lima
Olinda Charone
