FIT BH prioriza produção mineira em cenário de dificuldades para os festivais

A escritora Conceição Evaristo e artistas no cortejo de abertura do FIT BH. Foto: Alexandre Guzanshe

Kil Abreu

Um dos mais importantes festivais de teatro do país, o FIT BH –  Festival Internacional de Teatro, Palco e Rua de Belo Horizonte completa 15 anos e prioriza, na edição de 2022, a produção local. Criado em 1994 e desde 2008 adotado como evento oficial da cidade, o FIT tornou-se nesses anos patrimônio cultural do município. A última edição seria em 2020, mas foi cancelada por causa da pandemia. A atual acontece em salas, espaços alternativos e ruas. Orienta-se pelo tema “Raízes – Arte, Existência e Nossa Latinidade”. Mantém sintonia, portanto, com as questões recorrentes na cena brasileira neste momento: o protagonismo da discussão étnica e racial, representatividade, gênero.

O acento nas produções locais ou de países próximos não é diferente de outros festivais que em edições “pós-pandemia” tiveram suas atrações internacionais reduzidas. Custos com a Logística, sobretudo com o deslocamento das equipes artísticas e cenários, são altos. Tornam-se quase proibitivos em tempos de crise. Se a viagem for intercontinental o transporte das cargas é fator decisivo. A reconstrução de cenografias no Brasil, quando isto é possível, tem sido um artifício utilizado pelas produções para viabilizar a programação, mas ainda assim o impacto nos orçamentos continua considerável pois há dispêndio com materiais, acompanhamento, mão de obra e variantes.

A este quadro desfavorável acrescenta-se o abandono, por parte do governo federal, das políticas públicas para a cultura no país. Sem uma política efetiva de apoio os eventos seguem invariavelmente na insegurança quanto ao planejamento entre uma e outra edição. Em outra frente, não são poucos os casos em que patrocínios privados, fundamentais para a consolidação das grades, são confirmados em cima da hora, o que cria um empecilho extra à participação das companhias estrangeiras que têm agendas mais disputadas.  Neste panorama as edições recentes dos festivais têm sido não as ideais, mas as possíveis, na chave da resistência. Para se ter uma ideia, a última edição da MITsp – Mostra internacional de teatro de São Paulo – teve três espetáculos estrangeiros.

Fuego Rojo: memórias latino-americanas a partir de Eduardo Galeano

Cena local e convidados

                De todo modo, dificuldades têm sido transformadas em qualidades. Na MITsp, por exemplo, o incremento da Plataforma Brasil – a programação nacional da grade -, junto às atividades formativas e pedagógicas garantiram a vitalidade do festival. O FIT BH parece seguir com a mesma solução. Ainda que a representação internacional seja enxuta (três espetáculos), a programação conta com  trinta montagens e inclui representação de seis Estados brasileiros. Entre estes, os ótimos AnonimATO, trabalho de rua da Cia. Mungunzá (SP), a performance Bola de Fogo, do baiano Fabio Osório, o recém-estreado Museu Nacional – todas as vozes do fogo, com a Barca dos Corações Partidos (RJ), E.L.A, solo da cearense Jéssica Teixeira, e o já referencial Manifesto Transpofágico, de Renata Carvalho (SP).

Apesar da programação diversa chama a atenção que diante do tema, convocando raízes e latinidades, não haja nenhum espetáculo da Amazônia. Para um recorte que conclama políticas da representatividade é uma ausência significativa. A curadoria foi convidada a comentar, mas não se manifestou até o fechamento da matéria.  

Entre os muitos artistas, pensadores e grupos mineiros estão programados o Teatro Negro e Atitude (À Sombra da Goiabeira), o Grupo Galpão (Nós, em colaboração com o diretor Márcio Abreu), o  Quatroloscinco (Tragédia) e o Oficcina Multimédia, que apresenta on-line as montagens Aldebaran e Maquinária. A prata da casa tem extensão nas homenagens e atividades formativas. Na abertura foram festejados um mineiro e uma mineira de peso: o ambientalista e filósofo Ailton Krenak (nascido na cidade de Itabirinha) e a escritora belo-horizontina Conceição Evaristo.  Além deles, o cenógrafo e figurinista Raul Belém Machado e o fotógrafo Guto Muniz são motivos para imersões criativas. O diretor e dramaturgo João das Neves (1935-2018) é carioca mas teve parte de sua vida ligada a Minas. O autor de O Último Carro terá uma Ocupação no Festival. Lembrança justa.

Os três espetáculos internacionais têm vocação para a cena política. Solilóquio é o solo de Tiziano Cruz. Vem da Argentina e debate a condição de migrante no próprio país. O grupo  Lagartijas Tiradas al Sol traz do México o ótimo Tijuana. O espetáculo nasce de um procedimento curioso: por seis meses o ator e diretor Lázaro Gabino Rodríguez tentou sobreviver com o dinheiro de um salário mínimo mexicano. A encenação é o relato cênico dessa experiência. O  Chile está representado com dois trabalhos. O bonito Fuego Rojo, do Coletivo La Patogallina, inspira-se nos escritos de Eduardo Galeano para falar, em técnicas circenses, sobre o colonialismo na América Latina.   Por fim, o grupo Kimvn Teatro apresenta Trewa – em transmissão on-line. Trata-se de um teatro documentário sobre episódios de violência contra a comunidade Mapuche.

A curadoria da 15ª. Edição do FIT BH foi feita pela atriz Andreia Duarte, o professor e pesquisador Marcos Alexandre e a atriz e diretora Yara de Novaes. O festival é promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de Belo Horizonte e Fundação Municipal de Cultura, com organização e produção do Instituto Odeon.

NOTA . Atualização.

Após o fechamento da matéria a curadoria do FIT BH estendeu o diálogo através da seguinte nota (trecho): “Toda a América Latina contempla a nossa latinidade e a Amazônia com certeza é uma das regiões mais importantes, pensando inclusive na perspectiva da floresta e dos povos originários. Por isso mesmo está contemplada com a presença dos vídeos performances de Zahy Guajajara e do belíssimo trabalho Waa – Nós entre ela e eu, uma parceria entre Lilly Baniwa e Verônica Fabrini. Bem como as epistemologias e lutas anticoloniais dos seus povos originários dialogam com a presença dos artistas indígenas na 15ª edição do FITbh, reverberando em seus trabalhos a essencialidade da floresta e a perversidade da violência histórica sobre suas vidas e territórios. Por exemplo, os trabalhos “Solilóquio” de Tiziano Cruz (ARG) e “Xawara”, do artista Potiguara, Juão Nyn que estão sendo apresentados presencialmente e, ainda, o “Trewa” do grupo de teatro KIMVN dirigido pela Mapuche Paula Gonzalez do CL que está online”.

Os editores consideram que esta é uma interlocução importante. Embora sejamos todos latinos e latinas, não é preciso advogar o fato de que a sociabilidade dos povos da Amazônia brasileira não são as mesmas dos Mapuche, embora haja condições comuns nascidas dos processos históricos de subalternização dos povos originários.

A matéria refere-se a espetáculos, que são, enfim, o fundamental do teatro, não à exibição de vídeos, independentemente da importância dos artistas convidados. Salvo engano esta também é uma preocupação anunciada pela curadoria, a representatividade. A propósito, entre os citados apenas Lilly Baniwa é de fato amazônida (do Amazonas). A grande Zahy Guajajara é nordestina, da Terra Indígena Cana Brava, Maranhão. O belíssimo trabalho de Juão Nyn está na confluência RN/SP. Todos e todas são importantes, devemos festejar que estejam no FIT. No entanto, a menos que se queira considerar que “indígena é tudo igual”, e com isso reforçar um clichê colonialista, diante do tema do festival é relevante a ausência de montagens teatrais vindas da Amazônia brasileira. A vigorosa produção artística da região existe e vai além dos escaninhos e da expectativa pela “autenticidade” que sempre está no olhar sudestino.

Esta discussão não serve apenas ao FIT BH, festival central nas artes cênicas do Brasil, levantado também na militância e na resistência pelas gentes que têm mantido acesa, na contramão do momento, a cultura do país. É uma provocação que pretende colaborar, não sem polêmica, a pensar o futuro próximo e as formas de representação política e estética que temos adotado no sistema de circulação dos bens culturais.

FIT BH 2002 – 5 a 11 de Novembro – Belo Horizonte, MG

Para acessar a programação completa e os locais das apresentações: http://portalbelohorizonte.com.br/fit 

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